Já se escreveu neste espaço que a maior sacada dos formuladores do Plano Real foi dar um fim à chamada inflação inercial, isto é, ao sistema pelo qual a inflação passada sustenta o patamar mínimo para a inflação futura. Intimamente ligada ao conceito de correção monetária, a inflação inercial atuava de maneira que a taxa inflacionária só conhecesse uma direção: morro acima. Não por acaso, seu criador da correção monetária – o genial Roberto Campos – amaldiçoou seu invento ao qualificá-lo como “instrumento de primeira categoria para economias de quinta”.
De acordo com a formulação dos criadores do Plano Real, a miríade de índices de inflação seriam trocados por um só: a URV. Depois, era só transformar o “novo indexador” em moeda, e tudo ficaria resolvido. Até aí, tudo bem. A história é conhecida e o Plano Real ostenta, com justiça, o posto de plano econômico mais bem sucedido do Brasil. O problema é que, como muitas coisas neste país, o trabalho ficou pela metade.
Na verdade, a desindexação da economia ficou pelo meio do caminho. Embora hoje não exista a mesma quantidade de indexadores flanando pelo mundo econômico, o fato é que ainda se encontra na prateleira um número incômodo de índices destinados a eliminar o risco inflacionário dos negócios. Nos aluguéis, por exemplo, não há um só que não contenha o reajuste anual pelo IGPM. Da mesma forma, quem assinou contrato de financiamento imobiliário deve estar familiarizado com o INCC. Até mesmo o Governo, esperto como só ele, não abriu mão de ter seu índice particular de indexação – a UFIR – para corrigir os valores dos impostos que a malta paga regiamente.
No primeiro momento, dizia-se que a manutenção de alguns índices de indexação permitiriam mitigar o risco de a economia desandar caso o Plano Real fosse pelo ralo. No fundo, no fundo, ninguém tinha certeza de que aquilo daria certo. O medo de um desastre econômico era uma constante entre todos os membros da equipe econômica. No entanto, se a manutenção de tantos índices funcionou como remédio pós-implementação, após vinte anos se tornou um veneno.
“Como assim?”, deve estar se perguntando você.
Bem, para quem viveu tempos nos quais a inflação diária era superior a 1% e a mensal passava fácil dos 80%, conviver com uma taxa anual de 5%, 6% não chega a ser exatamente um drama. Mas, olhando-se ao redor, tais índices estão longe de representar a estabilidade que se espera de uma grande economia.
Nos Estados Unidos e na Europa, por exemplo, é um escândalo quando a inflação ultrapassa os 2% anuais. No Japão, então, nem se fala. Lá eles têm deflação e se esforçam para produzir um mínimo de inflação, para ver se convencem as pessoas a tirar as economias de debaixo do colchão. Aqui, no entanto, convive-se com quase o triplo como se fosse a coisa mais natural do mundo, quando tal nível de desvalorização da moeda já deveria ter conduzido a economia ao desastre já há um bom tempo.
De fato, ainda que numa escala infinitamente menor, a inflação inercial persiste no Brasil. Quando se fala em reajustes da energia elétrica, da telefonia e dos tributos cobrados à população, o que se está embutindo no vocábulo é uma forma dissimulada de indexação da economia. Se a inflação anual ronda os 5% em um determinado ano, e os preços em geral serão corrigidos no mesmo patamar, como imaginar que um dia a inflação venha a baixar de 5%?
Por isso mesmo, um dos principais objetivos do país deveria ser completar o serviço que ficou pela metade em 1994, ou seja, desindexar o que resta da economia. Sem a mitigação do risco inflacionário, a lógica dos preços obedeceria à única regra que deveria seguir desde sempre: a lei da oferta e da procura. Com isso, a inflação seria vista como deve ser: um mal da economia. E não um doce aliado dos agentes econômicos, como é hoje.