A privatização sob um enfoque ideológico

Se há uma palavra que se tornou maldita no Brasil é a chamada “privatização”. Vocábulo normalmente utilizado para designar a transferência de ativos do poder público para o setor privado, “privatização” tornou-se sinônimo de entrega do patrimônio público a preço de banana. O medo do emprego da palavra amaldiçoada é tanto que ontem, por exemplo, a presidente Dilma Roussef achou por bem convocar uma cadeia nacional de rádio e televisão só para dizer que o leilão para exploração do campo de petróleo de Libra não foi “privatização”.

Do ponto de vista histórico, o receio tem lá sua razão de ser. Aquilo que começou timidamente como uma proposta de reforma do Estado no governo Collor, acabou se transformando em queima geral no desastrado governo Fernando Henrique Cardoso. Por obra do destino, a venda de empresas estatais naquele tempo ficou gravada no imaginário coletivo como a principal “marca da gestão” FHC, eclipsando outros desastres, como o apagão, a apreciação do dólar e os índices pífios de crescimento econômico. Desde então, todos os políticos, de todos os espectros eleitorais, fogem do termo como o capeta da Cruz.
A questão, contudo, é: a privatização é um mal em si?

E a resposta é óbvia: claro que não.

Em qualquer contexto histórico, o Estado vez por outra tem de assumir a frente de certos negócios, porque simplesmente o setor privado não tem condições (grana) ou apetite (interesse) em investir em determinado setor. Hoje, por exemplo, não passa pela cabeça de ninguém o desinteresse dos investidores com algo tão rentável quanto a siderurgia. Mas houve um tempo no qual investir nisso era sinônimo de prejuízo.No começo do século XX, o Brasil era um país rural, atrasado e sem muitas perspectivas de se tornar uma potência econômica dinâmica. Com um país dedicado à produção de café, não havia razão para instalar um parque siderúrgico por aqui. Embora houvesse alguma produção em Minas Gerais, o país ainda continuava seriamente dependente do aço importado.

A coisa só começou a mudar quando, no arranjo político da II Guerra Mundial, Getúlio Vargas negociou com os americanos a concessão de bases aéreas no território brasileiro pela transferência de tecnologia que permitiu a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).

Daí em diante, o que se viu foi uma explosão da indústria nacional, especialmente com a vinda das montadoras de automóveis. Algo impossível, caso não houvesse por aqui aço para produzir veículos.Evidentemente, já na virada do milênio, não fazia mais sentido o Estado continuar investindo em siderurgia. Havia muitas outras prioridades em um país onde, até pouco tempo atrás, 30 milhões de pessoas viviam abaixo da linha de pobreza. E aí se cai no seguinte dilema: o que fazer com todas as empresas que foram construídas durante esse período?

O melhor caminho seria, claro, repassá-las ao setor privado. Ele é mais dinâmico – porque sujeito a menos controles – e mais potente – por dispor de mais dinheiro – para desenvolver qualquer atividade econômica. Desde sempre, a atuação do Estado na economia deve ser marginal e episódica, porque sua função deve ser cuidar dos bens essenciais à população (educação, saúde, segurança, etc.). Não por acaso, é exatamente isso que está previsto no art. 173 da Constituição Federal, ao dispor que “ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.

Uma vez entendido isso, o dilema desdobra-se em três questões fundamentais: O que privatizar? Como privatizar? Para que privatizar?

E foi aí que a porca entortou o rabo.

Em primeiro lugar, não houve qualquer reflexão acerca do que se deveria privatizar entre as centenas de empresas estatais criadas durante o século XX (a maioria, curiosamente, no período militar, o que desmoraliza a noção de gorilas como “representantes da direita”). Tudo bem que siderurgia não tivesse lá muito interesse estratégico para o país, mas era realmente necessário privatizar todas as empresas de telefonia estatais? Não teria sido melhor abrir a concorrência ao setor privado e, mantendo-as, garantir um mínimo de competição entre as empresas?

No fim das contas, as únicas empresas que ficaram a salvo da sanha privatista do Governo Fernando Henrique – Petrobras, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil – só não foram privatizadas porque o desastre econômico já estava feito e o governo não tinha mais força política suficiente para bancar a empreitada. Sobre isso, não custa lembrar que, uma semana depois da desvalorização do Real em 1999, a revista Veja defendeu o queima das três empresas como uma forma de “restabelecer a confiança dos mercados”.

Em segundo lugar, a escolha de como seriam privatizadas as empresas estatais não poderia ter sido pior. Em quase todos os casos, montavam-se consórcios reunindo fundos de pensão de estatais ou, então, bancados com dinheiro do BNDES. Ou seja: o “investidor” não precisava entrar com dinheiro nenhum. Bastava a disposição para assumir o negócio.

Pra piorar, em razão disso, era o governo quem definia, ao fim e ao cabo, quem ganharia a empresa. Isso favoreceu o aparecimento de diversos afortunado$, que herdaram patrimônios formidáveis sem desembolsar um só ceitil. Não à toa, pipocaram escândalos de toda a ordem, antes e depois, levando Elio Gaspari a cunhar o neologismo que melhor representaria todo o processo: “privataria”.

Em terceiro lugar, ninguém estabeleceu um objetivo a ser alcançado com as privatizações brasileiras. Quer dizer, havia um único objetivo, tautológico por definição: transferir o patrimônio público para mãos privadas. Mas o que se faria com o dinheiro auferido nas privatizações? Seria utilizado para abater a dívida pública? Seria investido em melhoria da educação?

Quando o processo de privatização se acelerou em 1995, a dívida pública brasileira representava menos de 20% do PIB, mais ou menos uns R$ 800 bilhões em dinheiro de hoje. Com a venda de estatais, obteve-se, por baixo, algo em torno de R$ 400 bilhões. Isso permitiria reduzir a dívida pública à metade. No final do Governo Fernando Henrique, a dívida tinha triplicado de tamanho, chegando a estratosféricos 60% do PIB. Quanto à educação, continuamos na mesma, a ponto de a grande briga dos royalties do pré-sal ter sido para destinar 100% da renda para a educação de base.

Ao invés de aplicar o dinheiro em coisas úteis, ou para melhorar a situação fiscal do país, a privatização serviu apenas para sustentar uma política cambial insana e, por tabela, garantir a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Não por acaso, o “legado” da era FHC garantiu a Lula duas eleições e ainda o direito de eleger sua sucessora, sem que o PSDB não tenha passado de um sparring nas últimas três eleições presidenciais.

Infelizmente, desde então o debate acerca da privatização tem sido interditado no país. Mesmo os seus antigos patrocinadores a renegam, a ponto de um ex-candidato a presidente (Alckmin) ter sido forçado a “prometer” na campanha eleitoral que não privatizaria mais nada. Com isso, algo que deveria ser visto exclusivamente sob um enfoque econômico, acabou demonizado por razões ideológicas. No rame-rame das eleições, ganha não só quem vende melhor o seu, mas quem consegue falar o pior melhor sobre o peixe do adversário. Enquanto a privatização é transformada na Geni das eleições, o debate que realmente interessa vai sendo deixado de lado.

E só quem perde com isso é o Brasil.

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