Em um post dos primórdios deste espaço, já vos alertava que o grande problema do Brasil é a profissionalização da esculhambação. Citando especificamente o caso do furto de bicicletas, alertava eu que a violência contra a pessoa e contra o patrimônio jamais acabaria enquanto o “mercado negro” continuasse a funcionar impunemente. Afinal, em 99% dos casos, as mercadorias são roubadas não para uso próprio, mas para revenda. Logo, se não houvesse quem se dispusesse a comprar produtos de origem “duvidosa” – para não dizer claramente produtos roubados – o índice de roubos e furtos despencaria de forma dramática.
A questão, contudo, vai muito além da violência urbana. Ou, por outro lado, a profissionalização da esculhambação acaba por afetar todo o tecido social de maneiras que você jamais conseguiria imaginar. Vejamos, por exemplo, o caso do desastre urbanístico das grandes cidades.
Quando o sujeito compra uma casa, a primeira coisa a fazer é mandar fazer as ligações da água e luz. Sem qualquer um dos dois, o conforto da vida moderna se esvai e você volta ao século XIX. O problema começa a aparecer quando surgem as ocupações irregulares. Um grupo organizado ou desorganizado se propõe a invadir um terreno, toma-o à força e, com a ajuda do “atravessador de ocupações”, compra alguns tijolos e telhas para erguer seus casebres. Levantadas as casas, a primeira providência que os invasores tomam é pedir às concessionárias as ligações do serviço de água e luz.
Do ponto de vista estritamente jurídico, é bem possível que não haja nada de ilegal nisso. Afinal, é direito de todo cidadão ter acesso a serviços públicos essenciais. Mas aí fica a pergunta: até que ponto é lícito prover uma habitação que não atende às regras mais básicas da Lei de Uso e Ocupação do Solo com tais serviços?
De certa maneira, a facilidade com que se obtém as instalações de água e luz, independentemente da origem lícita ou ilícita da propriedade, acaba funcionando como estímulo à indústria das invasões. Os atravessadores descobrem um terreno desocupado, arregimentam algumas famílias miseráveis, cobram – como de hábito – suas velhas e boas comi$$ões e acabam por instalar um novo foco de favelização da cidade.
E o problema não se restringe somente ao andar de baixo. Ela já alcança níveis assustadores no andar de cima.
Para quem não sabe, o mau costume das invasões não é restrito às classes mais pobres da população. Pelo contrário. Boa parte das classes mais elevadas ceva sua fortuna à custa das mesmas práticas irregulares. Nesse caso, as grandes responsáveis por isso são construtoras e incorporadores. Da mesma forma que os atravessadores de invasão, construtoras e incorporadores inescrupulosas vão em busca de terrenos abandonados pela cidade. Na maior parte dos casos, esses terrenos são de propriedade municipal, lugares que deveriam ter sido praças ou campos de futebol, mas que, graças à incompetência dos gestores, transformaram-se em terrenos baldios.
Identificado o terrenos, os empresários arregimentam gente em cartórios para “grilá-lo”. A grilagem não resiste a uma análise mais acurada, mas é o suficiente para ludibriar a média dos consumidores. A partir daí, o enredo é conhecido: os sujeitos constróem as casas e/ou apartamentos, vendem-nos aos incautos e, depois, dão a obra por entregue.
Pra piorar, os bancos, que antes só financiavam moradias quando a documentação da propriedade estava completamente em ordem, hoje já se dispõem a emprestar com base em simples contratos de promessa de compra e venda. Ou seja: se antes o banco recebia a garantia da propriedade imóvel para pagamento da dívida, hoje recebe no máximo a garantia de que terá uma fração do terreno não legalizado para executar. E, no caso das ocupações de terrenos públicos, nem isso.
O que pode parecer uma simples irregularidade acaba, na prática, afetando todo o ecossistema urbano. Da mesma forma que as invasões do andar de baixo, as ocupações do andar de cima também são ilegais. Embora não promovam, em princípio, a deterioração da paisagem, as construções irregulares privam a cidade de espaços públicos e, mais ainda, contribuem para tornar ainda mais caótico o trânsito nas grandes cidades.
Como se isso não bastasse, o pobre coitado que comprou o imóvel jamais poderá registrá-lo em seu nome. Isso causará imensos transtornos quando quiser vendê-lo ou mesmo quando morrer e tiverem de fazer seu inventário. Ademais, se daqui a pouco muita gente nessa situação começar a dar calote nos financiamentos, os bancos não terão como receber seus créditos, o que pode levar a uma crise de confiança quanto à saúde de todo o sistema bancário.
Tudo isso poderia ser evitado com uma medida tão simples quanto prosaica. Quer ligar água e luz? Só se estiver com a papelada em ordem.
Fica a dica.
Sobre as bicicletas da Dinamarca, quando será que o brasileiro se nivelará ao holandês, em termos de civilidade? Depredar Roma antes e depois de uma partida de futebol?
Como eu sou um crente na evolução da humanidade, acho que sim, Comandante. Mas, infelizmente, não será tão cedo, e muito provavelmente não estaremos neste plano da existência para presenciar tal fato. Um abraço.