Devagar com o andor, porque o santo é de barro

Há pouco mais de dois meses, o país foi sacudido pela maior onda de protestos de sua história. Quer dizer, pode até não ter sido a maior, mais certamente foi a que levou mais gente à rua de forma espontânea. Em todos os outros casos, ou havia partidos políticos/sindicatos por trás, ou havia a grande mídia insuflando o povo. Dessa vez, não. Todos foram às ruas porque queria ir às ruas, e não porque havia alguém por trás os motivando a sair de casa. Se por um lado isso aumentou a beleza do movimento, por outro tornou sua pauta extremamente difusa, sem que se pudesse saber exatamente o que se queria.

Já que não dava para raciocinar em termos positivos – ou seja, já que não se sabia exatamente o que o povo queria – a classe resolveu raciocinar por exclusão, isto é, deixar de dar ao povo aquilo que ele não queria. Enterrou a PEC 37, acabou com os aumentos nos ônibus e abortou a tentativa de mitigar os efeitos da Lei da Ficha Limpa. Até aí, tudo bem. As ruas mais ou menos queriam (também) isso mesmo.

A porca começa a entortar o rabo no momento em que o Congresso atravessa a fronteira do negação e avança para o terreno incerto da proposição. De tudo um pouco, houve projetos para todos os gostos, sempre apresentados como “resposta” ao ronco das ruas. Havia descaramentos – como o fim da vitaliciedade de juízes e promotores – e havia espertezas – como a destinação da renda dos royalties do pré-sal para a educação e para a saúde. No oba-oba, pouca gente se dá conta dos malefícios que se faz ao país quando a agenda política se faz a reboque do clamor da turba. Vamos a dois exemplos:

1 – Fim de todas as votações secretas  no Congresso Nacional:

Proposto como estrela da pauta moralizadora do Congresso, o fim do voto secreto nas duas casas deliberativas é vendida ao distinto público como a redenção dos males corporativistas dos parlamentares. Protegidos pelo sigilo das votações, muitos parlamentares encalacrados já conseguiram salvar seus mandatos propagando uma única dúvida: “E se amanhã for você, meu amigo deputado/senador?”

Ok. O fim do voto secreto pode impedir a salvação de escroques. Mas muita gente se esquece de que não é só na cassação de parlamentares que se aplica o sigilo das votações. Na indicação de ministros do Supremo, por exemplo, a identificação do senador fica protegida pelo manto do segredo. Isso impede o futuro ministro de retaliar algum parlamentar que tenha votado contra sua indicação ao STF.

Pior que isso, só mesmo o caso dos vetos presidenciais. Para derrubar o veto, é necessário maioria absoluta na Câmara dos Deputados e no Senado. Só mesmo sendo muito ingênuo para achar que o governo da hora não vai retaliar os parlamentares que ousarem derrubar um veto presidencial. E, logo agora que o Congresso resolveu estabelecer um procedimento decente para a votação dos vetos, a garantia do escuro das votações pode cair e praticamente encerrar a possibilidade prática de o Congresso ter a última palavra em matéria legislativa.

2 – “Recall” para mandatos majoritários:

No rescaldo da “Reforma Política”, já se ouve ao fundo um murmúrio da importação para o Brasil da figura norte-americana do “Recall”. Em resumo, o Recall permite aos eleitores defenestrar o governante antes do encerramento natural de seu mandato. Se o sujeito não faz um bom governo e a população perde a paciência com ele, junta-se um punhado de eleitores, propõe-se uma nova votação e – pimba! – da mesma forma com a qual colocado, o sujeito é tirado do poder.

Na teoria, uma beleza. O Recall seria vacina contra a velha artimanha de políticos prometerem uma agenda para se elegerem e, uma vez sufragados, governarem com outra agenda, oposta à anterior. Na prática, contudo, o buraco é mais embaixo.

Da mesma forma com que campanhas midiáticas positivas podem eleger candidatos, as mesmas inserções, só que negativas, podem derrubá-los. A despeito do crescimento das redes sociais, a grande mídia ainda exerce papel preponderante na distribuição de notícias. Como advertiu Luís Nassif, a figura do Recall poderia aumentar o poder de chantagem das grandes redes, especialistas que são em “assassinatos de reputação”.

A grande questão, portanto, é impedir que o emparedamento do Congresso pelas ruas sirva para transformar projetos aparentemente inofensivos em grandes problemas no futuro. O debate congressual é antes uma virtude do que um problema do Legislativo. Embora possa causar certo atraso na aprovação das leis, é ele quem garante o mínimo de reflexão acerca de suas consequências. Não é necessário que esse garantia de bom funcionamento seja colocada em risco sob o pretexto de responder às reclamações da malta.

Porque prudência e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém…

Esta entrada foi publicada em Política nacional e marcada com a tag , , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.