A constituinte exclusiva

Ontem, a presidente Dilma Roussef propôs à Nação a convocação de um plebiscito sobre a convocação de uma constituinte exclusiva para tratar da reforma política. Trata-se de uma resposta às manifestações que têm convulsionado o país há mais de 10 dias, nas quais se pede diminuição das tarifas de ônibus, combate à corrupção e o fim da edição anual do Big Brother Brasil.

Que é uma medida de grande impacto midiático, não há qualquer dúvida. Hoje só se fala nisso. Já há gente se posicionando contra ou a favor como as torcidas do Vasco e do Flamengo quando chegam ao Maracanã. Dependendo do time que eu torça, vou para a direita ou para a esquerda da arquibancada. Infelizmente, o buraco, neste caso, é bem mais embaixo do que as paixões políticas podem encapsular.

Por definição, não existe tal coisa como uma “Assembléia Constituinte exclusiva”. Do ponto de vista jurídico, uma “constituinte exclusiva” faz tanto sentido quanto uma “gravidez parcial”. Não há como estar grávida pela metade; ou se está ou não se está. Da mesma forma, ou a Constituinte se instala para fundar um novo ordenamento jurídico, ou então não será Assembléia Constituinte.

Como se sabe, a Assembléia Constituinte é o modo primário de exercício do chamado “Poder Constituinte Originário”, isto é, o poder do povo de estabelecer um novo Estado a partir “do nada”. Esse novo Estado pode surgir do desmembramento de um Estado anterior, da fusão de dois ou mais Estados, ou mesmo – o que é mais comum – a “refundação” de um Estado já existente. Exemplo mais bem acabado desta última hipótese é a própria Constituição de 1988. Depois de um longo período de exceção, no qual vivíamos sob a tutela dos gorilas, decidiu-se que um novo Brasil democrático precisava de uma nova constituição adaptada aos novos tempos. E assim nasceu a “Constituição Cidadã”.

Como poder absoluto de autogoverno do próprio povo, o Poder Constituinte Originário não pode ser submetido a qualquer amarra. Ele não se prende a qualquer limite estabelecido no ordenamento anterior e pode dispor, literalmente, sobre tudo e qualquer coisa. Por isso, diz-se que o Poder Constituinte é incondicionado e juridicamente ilimitado.

Dessa forma, a convocação de uma “Assembléia Constituinte Exclusiva” esbarra em dois problemas fundamentais de origem. Primeiro, uma vez instalada, nada impede que ela se assuma como poder soberano que é e disponha sobre qualquer outra matéria que não sejam aquelas incluídas no rol da chamada “Reforma Política”. Segundo, ainda que eventualmente a Constituinte se auto-restringisse aos temas da “Reforma Política”, não haveria como pautá-la a priori, isto é, dizer de antemão o que ela poderia ou não votar. Nada poderia impedir que tal Constituinte, instalada para tratar sobre temas como: fidelidade partidária, financiamento público de campanhas, sistema de eleição parlamentar, pudesse tratar de temas outros, como sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo) ou, no limite, até forma de governo (república ou monarquia).

Além disso, como bem observou o novo Ministro do STF Luís Roberto Barroso, não há qualquer necessidade de uma Constituinte exclusiva para debater a reforma política. Tal necessidade somente se faria presente se alguma das matérias nela contidas estivesse protegida por alguma cláusula pétrea da Constituição (aquelas que não podem ser modificadas nem por emenda constitucional). Todas as matérias relacionadas à reforma política podem perfeitamente ser objeto de deliberação por meio de PECs e até mesmo de projetos de lei, como o financiamento público de campanhas.

Na verdade, a Constituinte exclusiva esconde um estratagema pelo qual o quórum para alteração da Constituição seria reduzido do atual – 3/5, em dois turnos por cada uma das casas do Congresso – para maioria simples da Assembléia Constituinte. Como as formas de alteração da Constituição constituem aquilo que os constitucionalistas chamam de “limitações implícitas ao Poder Constituinte Derivado”, qualquer tentativa de alterar a Constituição que não fosse por meio de emendas à Constituição seria tido como alteração inconstitucional da Carta.

O Brasil não precisa de uma nova constituinte. Precisa é que o Congresso faça seu trabalho.

Quanto à Constituição, vai bem, obrigado.

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5 respostas para A constituinte exclusiva

  1. K disse:

    Ouvir falar em Assembleia Constituinte chega a dar até um arrepio. Como você bem disse, meu amigo, a Constituição vai bem, obrigada, e não há absolutamente nada que justifique neste momento o rompimento da ordem jurídica e a desestabilização institucional justamente quando nossa jovem democracia começa a madurar. Espero ardentemente que tudo isso não passe de uma figura de linguagem da presidenta para enfatizar que ela pretende levar em sério os clamores por reforma política. E que o faça por PEC, que é como deve ser… Bjos

    • arthurmaximus disse:

      Pois é, minha amiga. Felizmente, hoje parece que a proposta foi à gaveta. Agora que vivemos o maior período de estabilidade política e institucional desde o Segundo Império, não é hora de mudar a Constituição. Antes, é preciso aplicá-la e torná-la cada vez mais eficaz. Beijos.

  2. Mourão disse:

    Cara……..cas. Já li muito sobre o assunto, mas não observei nada nem de perto tão bem explicado. E olhe li textos e ouvi pronunciamentos de especialistas e “especialistas” bem mais longos. Será que a Presidente foi mesmo assessorada, mesmo que haja sido uma mera tirada política. Ela defendeu tese bem ao gosto de quem tem boas recordações do autoritarismo, e esse com certeza não é o caso.

  3. Pingback: Tudo junto e misturado: Lula livre; Golpe na Bolívia; Nova constituinte? | Dando a cara a tapa

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