O bafáfá político dos últimos tempos diz respeito à disputa dos estados pelo dinheiro referente aos royalties da exploração de petróleo. Como briga de foice no escuro, ninguém consegue enxergar direito o que se passa na penumbra. Sabe-se apenas que a disputa é feia, envolve golpes baixos de lado a lado, e pouca gente se arrisca a prever um desfecho.
A questão é antiga. Desde sempre, os estados chamados produtores – principalmente Rio de Janeiro e Espírito Santo – foram aquinhoados com uma fatiar maior do bolo dos royalties. Os outros estados, como irmãos a invejar os filhos mais favorecidos, sempre reclamaram que o pai – ou melhor, a mãe União – privilegiava-os demais, a ponto de se tornarem meninos mimados, dependentes da mesada mensal. Queriam porque queriam que a repartição fosse mais equânime, o que, a princípio, é difícil de contestar.
O problema é que, do ponto de vista estritamente conceitual, royalties são indenização pelas necessidades de adequação da infraestrutura dos locais onde a exploração tem lugar. É dizer: como onde há exploração inevitavelmente há também fluxo migratório de trabalhadores, as cidades que receberão as máquinas e instalações exploratórias têm de aumentar a quantidade, por exemplo, de escolas e de hospitais, para fazer frente a essa demanda. Sem dinheiro, não conseguiriam aumentar essa infraestrutura e, por conseguinte, iriam ao colapso. Sob esse prisma, não haveria dúvida de que os royalties devem ir preponderantemente para os estados e municípios produtores.
Do ponto de vista jurídico, contudo, o nó é um tanto difícil de desatar.
De acordo com a Constituição, “É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração” (art. 20, §1º).
A chave para a compreensão do imbróglio reside nas três expressões grifadas.
Primeiro, a Constituição garante a todos os entes da federação, indistintamente, o direito à “participação no resultado da exploração”. Não há, no texto constitucional, qualquer referência à distinção entre estados produtores e não produtores quando a questão é “participação no resultado”.
Segundo, a Constituição fala em “compensação financeira pela exploração”. Nesse aspecto, embora não haja menção expressa, aqui a distinção entre estados produtores e não produtores é nítida, pois só se pode pensar em “compensação financeira pela exploração” daqueles que são diretamente atingidos pela atividade. O problema é que essa expressão é precedida de uma partícula alternativa capaz de mudar toda a interpretação do tema. O “ou” a preceder “compensação financeira pela exploração” alterna essa possilidade justamente com a “participação no resultado da exploração”. Ou seja: do ponto de vista constitucional, não é imprescindível que haja indenização financeira aos entes atingidos pela atividade exploratória, desde que lhes assegure “participação no resultado da exploração”.
E é aqui que a porca entorta o rabo. Como tudo relativo aos royalties é assegurado “na forma da lei”, o legislador pode alterar como bem entender a repartição do dinheiro auferido às empresas petrolíferas. A única obrigação que ele tem é de garantir aos entes federativos “participação no resultado da exploração”, sem necessidade de atender à função precípua dos royalties: compensar financeiramente os estados e municípios receptores das ondas migratórias.
Constitucional? Sem dúvida. Lógico? Provavelmente não. Injusto? Possivelmente sim.
O imbróglio, no entanto, não pára por aí. A grita maior de Rio de Janeiro e Espírito Santo diz respeito à mudança nos valores que eles hoje já recebem a título de royalties. Alega-se principalmente que a mudança no percentual das indenizações relativas a campos já licitados fere o chamado “ato jurídico perfeito”.
Do ponto de vista jurídico, o argumento é insustentável. Segundo a própria Constituição, o petróleo é um bem da União. Dessa forma, os contratos de concessão para exploração são firmados entre o Governo Federal – pela ANP, especificamente – e as empresas petrolíferas. Ela recebe os royalties e se encarrega de distribuí-los conforme determina a lei. Para que o argumento de violação ao ato jurídico perfeito se sustentasse, seria necessário entender que os estados fariam parte do contrato, o que, como se viu, não acontece.
Também não convence o argumento de que há contratos firmados entre a União e os estados produtores vinculando o pagamento das dívidas destes vinculado ao recebimento dos royalties. Não vi os contratos, mas acho difícil acreditar que nesses contratos estejam definidos percentualmente os valores relativos à compensação financeira. Fora isso, ainda que estivessem definidos em termos percentuais, isso não invalidaria o fato de que o contrato de exploração de petróleo é firmado entre a União e as petroleiras. O máximo que os estados produtores conseguiriam fazer seria revisar os contratos de pagamento da dívida, dada a diminuição do fluxo financeiro decorrente dos royalties.
Dessa forma, do ponto de vista estritamente jurídico, a nova regulação dos royalties é plenamente constitucional.
Com alguma sorte, recorrendo à sensibilidade dos julgadores, os estados e os municípios produtores podem arrancar do STF uma decisão que lhes garanta a manutenção dos mesmos valores recebidos atualmente. Invocando-se o argumento federativo, os ministros do Supremo podem entender que uma lei, por mais constitucional que seja, não pode colocar em xeque a viabilidade financeira de outros entes da federação.
O grande problema dessa briga toda é que, uma vez mais, o Supremo será chamado a resolver uma pendenga que deveria ter começo, meio e fim no Parlamento. Questões federativas devem ser objeto de debate e acordo na sede própria, com os representantes do povo, não por meio de instâncias judiciais.
Ou o Congresso se dá conta de que roupa suja se lava em casa, ou daqui a pouco será melhor debater a transformação do STF em “Terceira Casa Legislativa” e começar a discutir a forma de eleição de seus membros.