Na noite de ontem, uma segunda-feira 13, várias obras de arte de valor incalculável perderam-se no meio das chamas provocadas pelo curto-circuito de um ar condicionado na cobertura do marchand Jean Boghici. Aparentemente incomodado com o batalhão de repórteres à sua volta,o colecionador parecia dar pouca importância à tragédia: “Não quero saber de quadro! Meu gato morreu, coitado, isso é que me dói”, sem disfarçar o sotaque carregado.
Romeno naturalizado brasileiro, Jean Boghici foi um dos pioneiros no mercado de arte no Brasil. No começo dos anos 60, começou a comprar e negociar quadros produzidos por pintores nacionais. Até aquele momento, a arte brasileira ainda não estava completamente firmada no cenário mundial. Era visto como algo exótico, interessante, como uma bijuteria africana, mas que não valeria lá o preço de uma verdadeira jóia.
Com faro fino e senso estético apurado, Jean Boghici enxergou em meio à cegueira mundial a qualidade das obras de arte produzidas aqui. Como todo aquele que sai na frente, Boghici conseguiu reunir um acervo verdadeiramente deslumbrante a um custo ridiculamente baixo.
Palmas pra ele. Até onde se sabe, mercadejar arte está longe de ser considerado crime. Sair na frente e conseguir obras-primas de primeira categoria por preços de quinta realça apenas o senso de oportunidade, mas não caracteriza falta de decência.
Não me interessa aqui entrar na questão do acondicionamento correto das obras de arte. Afinal, quem mantém numa cobertura repleta de obras de arte refrigerada por um ar condionado “janeleiro” dispensa maiores comentários.
A questão, a meu ver, é outra, e bem mais funda: até que ponto é moral aceitar que obras de arte, que deveriam ser de acesso universal, fiquem trancafiadas em um apartamento para o deleite egoísta de seu dono?
Obras de arte são manifestações que retratam um artista, um modo de viver e, no limite, uma forma de ver o mundo. Elas só fazem sentido se puderem ser observadas e admiradas por todo aquele que a desejar ver. Privar o mundo de ter acesso a elas significa renunciar a parte de sua própria humanidade, como se o resto do planeta não fosse digno o suficiente para contemplá-las. Somente os eleito$ gozariam deste privilégio.
No começo do século XX, JP Morgan, um dos maiores banqueiros da história dos Estados Unidos, amealhara uma coleção que, a preços atuais, valeria uns bons US$ 250 milhões. Obcecado pelo dinheiro – como todo bom banqueiro -, JP Morgan não renunciou à sua humanidade. Doou a maior parte de seu acervo ao Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque. Hoje, por meros US$ 25,00, ela pode ser contemplada até pelos devedores de seu banco.
Para quem acha que esse tipo de caridade só acontece na parte de cima do Globo, não custa lembra que o Museu de Arte de São Paulo deve a parte mais exuberante de seu acervo a Assis Chateaubriand. Aliás, o nome do museu é Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. O acrônimo MASP acaba fazendo com que se esqueça de seu benfeitor. Fora ele, há ainda o Instituto Ricardo Brennand no Recife. Nele, além de obras de seu primo Francisco, há quadros como os de Franz Post, os primeiros retratos do continente americano.
O que diferencia JP Morgan, Chatô e Brennand de Jean Boghici?
A percepção de que uma obra de arte exposta em museu vale muito mais do que um quadro para ordenar a própria sala.
Agora, depois que as obras foram levadas em uma triste segunda-feira de cinzas, resta-nos apenas a constatação do próprio Boghici:
“Infelizmente, o Samba foi pra bêlêlêu”.