Hoje provavelmente o Banco Central vai cortar os juros de novo. Chegaremos a um nível de taxa de juros jamais visto no país, o que por si só já será uma maravilha.
Mas me arrisco a dizer que, mais importante do que isso, é a mudança de orientação do Banco Central quanto à política de emissão de títulos do governo, iniciada no primeiro Governo Lula e acentuada agora.
Tradicionalmente o país com a taxa de juros mais alta do mundo, o país vivia simultaneamente uma das mais aberrações financeiras da histórica econômica mundial. Do que estou falando? Dos títulos atrelados à taxa básica de juros (Selic).
Para explicar o porquê disso, terei que explicar mais ou menos o funcionamento do sistema de títulos públicos. Também farei alguns arredondamentos grosseiros para poder tornar a apresentação mais inteligível. Mas o que importa, afinal, é entender o mecanismo que transformar algo corriqueiro em todo mundo em um perverso sistema de cumplicidade entre mercado financeiro e autoridades governamentais lenientes ou mesmo irresponsáveis.
Seguinte: suponha que a taxa de juros atual do Brasil seja 1% a.a. Para captar dinheiro no mercado, o governo lança títulos públicos, com prazo de resgate de 10 anos. Assim, o governo lança um papel com valor de face de R$ 100,00, mas estes R$ 100,00 só poderão ser resgatados em 2022 (10 anos). Se a taxa de juros é de 1% a.a e o sujeito vai receber R$ 100,00 daqui a 10 anos, o valor de venda do título será de R$ 90,00. Em 10 anos, remunerados a 1%a.a, os R$ 90,00 virarão os R$ 100,00 prometidos no título.
Muito bem.
Como o governo só pagará o título no vencimento, isto é, 2022, se eu precisar do dinheiro daqui a 5 anos, terei de revendê-los no mercado secundário. Trocando em miúdos: terei que arrumar alguém (uma pessoa, um banco, uma empresa) para comprar meu título. Como se passaram 5 anos, o título valerá agora R$ 95,00. Embolsarei R$ 5,00 de lucro e sigo com a vida.
Mas isso só acontece se a taxa de juros se mantiver estável em 1% a.a.
Se a taxa de juros cair para, por exemplo, 0,5% a.a, subitamente o valor do meu título irá subir.
“Por quê?”
É só fazer o mesmo cálculo acima. Um título igual ao meu, lançado no dia seguinte a uma taxa de 0,5%, seria vendido por R$ 95,00 (os R$ 100, 00 do valor de face menos 5%, equivalente à taxa de 0,5% em 10 anos). Portanto, se eu fosse revender meu título hoje, venderia pelos mesmos R$ 95,00 dos títulos novos.
Ou seja: pelo simples fato de a taxa de juros ter caído 0,5% de um dia pro outro, eu ganharia em um dia o que normalmente eu deveria esperar 5 anos pra ganhar.
Só que isso funciona também na mão contrária.
Se a taxa de juros, por exemplo, subir de 1%a.a. para 2% a.a., um título lançado hoje com o mesmo prazo de 10 anos seria vendido por R$ 80,00 (R$ 100,00 do valor de face menos os 20% do rendimento de 2% em 10 anos). Logo, se eu resolvesse vender o título no mercado secundário, perderia 10% logo de cara, em um único dia.
“E daí?”
Daí que isso mostra que, em todos os lugares do mundo, todos os atores do sistema financeiro – bancos, empresas, investidores, etc. – perdem dinheiro quando os juros sobem e ganham quando eles caem.
No Brasil, contudo, com a deformação dos títulos atrelados à Selic, nada disso acontece. Faça chuva (juros subindo) ou faça sol (juros caindo), o sujeito ganha, porque a variação do seu título está diretamente atrelada à taxa de juros fixada pelo Banco Central. E, mais especificamente, sempre que os juros subam, o sujeito irá ganhar mais, porque seu rendimento ao final, seja vendendo no mercado secundário, seja esperando até o prazo de resgate do título, será sempre maior.
Com isso, criou-se um sistema viciado segundo o qual todo mundo torcia e fazia força para que os juros subissem, de modo a garantir lucros boçais com risco zero. Daí os analistas do sistema financeiro sempre pedindo juros mais altos como forma de mostrar “responsabilidade” e “restaurar a confiança” do tal “mercado”.
Hoje, com a gradual substituição dos títulos atrelados à Selic pelos títulos prefixados, essa deformação tende a desaparecer. Felizmente, três décadas de perversão financeira que fizeram explodir a dívida pública e ceifaram a duas gerações um crescimento econômico compatível com o potencial do Brasil serão lembradas apenas como uma página negra na história, a nunca mais ser repetida.