Desde a sexta-feira passada, a pergunta que todo mundo está mais ou menos se fazendo é: o que aconteceu no Paraguai foi ou não um golpe de Estado?
À primeira vista, não dá pra classificar como golpe o destituição do Bispo Procriador Fernando Lugo. Afinal, há um processo de impeachment previsto na Constituição paraguaia, o pedido de destituição seguiu o rito natural nesses casos – abertura do processo na Câmara e julgamento pelo Senado – e, em ambos os casos, a derrubada foi aprovada por larga maioria. Se o mero destronamento do presidente pelo Congresso pudesse ser classificado como golpe, teríamos necessariamente de admitir que o que houve no Brasil em 1992 com Fernando Collor de Mello também o foi.
Além disso, um golpe de Estado normalmente está associado a algum tipo de levante, popular ou militar, que rompa com a ordem institucional, isto é, implique a derrubada de um presidente, fechamento do Congresso ou interdição do Judiciário. Isso tudo, claro, partindo-se do pressuposto de que todos estejam investidos de mandato democrático (leia-se: tenham sido eleitos livremente pelo povo).
Houve isso no Paraguai?
De novo, a resposta é negativa. As Forças Armadas ficaram no canto delas e, a despeito da movimentação de manifestantes defronte ao Congresso, a participação dele foi irrelevante na decisão do Congresso. Até porque, a maioria dos piqueteiros era contra o impeachment.
Se é assim, por que tanto bafáfá em torno da queda de Fernando Lugo?
O problema é que já estamos no século XXI. Os velhos golpes latinoamericanos se tornaram démodé. Ninguém mais assume de maneira aberta e franca a tentativa de deposição de um presidente democraticamente eleito. Procura-se sempre uma forma subreptícia de se atingir o mesmo objetivo com um verniz de legalidade, de modo a aplacar o marketing negativo junto à comunidade internacional.
Tanto isso é verdade que em 2002, quando um grupo de militares apoiado pelos Estados Unidos tentaram depor na marra El Compañero Hugo Chávez, o odor fétido do golpe logo exalou pela região e fez com que a cara de repulsa dos vizinhos se transformasse em ação efetiva contra o levante. Uma semana depois, Chávez estava de volta à presidência da Venezuela.
Agora, os golpes têm de vir travestidos de normalidade institucional. Foi o que aconteceu em Honduras e 2009 com Manuel Zelaya, está sendo o que acontece agora com Fernando Lugo no Paraguai. Ninguém em sã consciência pode admitir como regular um processo deimpeachment que comece em um dia e termine no outro. Processos políticos dessa natureza não podem resultar em decisões tomadas de afogadilho. Só a título de comparação, no caso brasileiro, do recebimento da denúncia pela Câmara (29.9.92) até o dia do julgamento no Senado (29.12.92), quando renunciou à Presidência, passaram-se três meses em que Collor pôde exercer seu sagrado direito ao contraditório.
Fora isso, carece a deposição de Lugo de um argumento razoável. Se no caso de Fernando Collor havia pelo menos um crime comum a ser apurado – a corrupção e o desvio de dinheiro, de que era exemplo o famoso Fiat Elba – no caso de Lugo só há a alegação de “mau desempenho do cargo”.
Pode até ser que, no ordenamento paraguaio, exista algum fundamento jurídico para amparar a deposição por mau desempenho do cargo. Mas, convenhamos, isso não é lá muito democrático.Impeachment é para casos de crime comum ou de responsabilidade. Suficiência do desempenho do cargo é algo a ser julgado exclusivamente pelo povo através do sufrágio.
E é bom que assim seja para que o povo tenha responsabilidade na hora de votar. Saber que, se votar mal, terá de aguentar o sujeito por toda a duração do seu mandato, sem a possibilidade de recorrer a saídas fáceis. Ademais, se todo governante com insuficiência de desempenho pudesse ser alvo de impeachment, ia dar uma confusão danada.
Para aqueles que acham que a América do Sul gira como rosca espanada quando o assunto é democracia, a deposição de Fernando Lugo é a prova de que estão errados. Em pelo menos uma coisa evoluímos: na elegância dos golpes contra a vontade popular.