Para quem nasceu nos anos 80, a palavra “pacote” normalmente estava associada a mais um dos planos econômicos mirabolantes que o governo do momento baixava para tentar domar a inflação. Mas, na verdade, antes da chamada “década perdida”, a palavra esteve associada a outra espécie de medida: as bruscas mudanças produzidas na ordem jurídica brasileira para beneficiar a ditadura de plantão. O exemplo mais bem acabado disso foi o chamado Pacote de Abril de 1977.
A ditadura pressentia seu ocaso, e o ditador da hora, Ernesto Geisel, queria porque queria manter o controle do seu processo de distensão “lenta, gradual e segura”. Na verdade, Geisel queria produzir uma desestruturação ordenada para a ditadura não porque fosse um democrata, mas porque temia que uma ruptura desordenada conduzisse a um período de caça às bruxas em um eventual governo verdadeiramente democrático. Seu propósito, portanto, era garantir a impunidade daqueles que torturaram e mataram em nome da “segurança nacional”.
Nas eleições de 1974, o Governo levara uma surra. Seu partido-títere, a Arena, mantivera o controle da Câmara e do Senado, mas havia perdido a maioria qualificada de 2/3 para alterar o texto constitucional. Pior. Havia o sério risco de perder, na eleição de 1978, a maioria no Senado Federal.
Geisel e Golbery, eminência parda da ditadura, urdiram um golpe às instituições. Enviaram um projeto de emenda à Constituição tratando de uma “reforma do Judiciário”. Como não tinha os votos necessários para aprová-la, o Governo teria que negociar com o MDB.
Naquela época, com a draconiana regra de fidelidade partidária, se um partido fechasse questão sobre determinada matéria, todos os deputados teriam que seguir a orientação partidária, sob pena de expulsão. A regra, criada para servir de antídoto contra eventuais defecções na Arena, agora funcionaria como veneno.
Alguns caciques do MDB – Tancredo Neves à frente -, sentindo o cheiro de queimado, tramaram liberar a bancada para votar como quisesse. Com isso, muito provavelmente o projeto de reforma do Judiciário seria aprovado. Mas não contavam com Ulysses Guimarães e Paulo Brossard.
Na reunião da Executiva, Tancredo defendeu a liberação da bancada. Ele, que dependia de uma desconstrução ordenada do regime para eleger-se via colégio eleitoral, sabia que mais hora, menos hora, o Congresso seria colocado diante do dilema das eleições diretas para presidente. Seria nessa hora que o MDB deveria pegar em lanças contra a ditadura. E, afinal, não valeria lutar pelos predicamentos de uma magistratura que se mostrava subserviente aos generais.
Ulysses, que dependia do exato oposto – o caos revolucionário de uma queda fulminante dos generais – para poder eleger-se em uma eleição direta, passou a palavra a Brossard. O senador gaúcho pretendia ficar calado, mas, uma vez lhe dada a palavra, passou a desancar a proposta de liberação. Emparedado, a Tancredo não restou outra alternativa senão seguir a maioria. A proposta de fechamento foi aprovada por unanimidade.
Na votação, produziu-se um embuste. De um lado, o governo fingiu-se derrotado, quando, na verdade, era a derrota que buscava. Do outro, a oposição comemorou a vitória, mas mal sabia o que viria pela frente.
Com o pretexto de que estava sendo vítima de uma “ditadura da minoria”, Geisel fechou o Congresso. Segundo o AI-5, toda vez que o Congresso era fechado, suas competências legiferantes eram transferidas ao Executivo. Como o próprio Geisel avisara, “se eu fechar o Congresso, vou fazer muito mais coisa do que somente essa reforma do Judiciário”. Dito e feito.
Com uma canetada, Geisel outorgou a mudança constitucional rejeitada pelo Parlamento. Aproveitando o ensejo, baixou uma série de outras medidas, todas destinadas a assegurar a maioria parlamentar da Arena e garantir seu projeto de distensão.
– De cara, baixou o quórum de aprovação das emendas constitucionais de 2/3 para maioria absoluta, coisa que a Arena ainda tinha.
– Das 2 vagas por Estado que estariam em jogo para senadores na eleição seguinte, metade seria escolhida pelas Assembléias Estaduais. Com um único voto – o seu – elegeu 22 dos 44 senadores que seriam eleitos em 1978, pois as assembléias estaduais eram amplamente dominadas pela Arena. Surgia, então, a esdrúxula figura do “senador biônico”.
– Estendeu-se o mandato do próximo presidente de 5 para 6 anos.
– Tornou indiretas as eleições de governador que se realizariam em 1978.
– Aumentou a representação proporcional dos deputados de estados menos populosos, onde o peso da mão do Estado se fazia mais presente.
Reaberto, ao Congresso não restou fazer mais do que chiar. Entretanto, se por um lado o Pacote de Abril garantiu sobrevida ao regime dos generais, por outro foi também seu canto do cisne. Ficou claro que o apoio popular se esvaíra, e que o Governo dependia de golpes na ordem institucional para assegurar sua manutenção. Com o desgaste natural do sistema, a queda da ditadura tornou-se um fato esperando para acontecer.
Como ele aconteceu, é matéria para outro post.
Pingback: A refundação da Arena | Dando a cara a tapa