Como mudar uma música sem mudar a letra

Um dos mantras favoritos de Ana O. é o seguinte: não é o que se diz. É como se diz. Ao que eu acrescento: não é o que se canta, mas como se canta.

Quem leu o post “Nem sempre o original é melhor”, viu que, em vários casos, a simples mudança de intérprete pode alterar radicalmente o sentimento ou a reação do público perante a música. No fundo, no fundo, ela continua a mesma; mas algo na entonação faz com que pareça uma coisa completamente diferente.

Vejamos o caso da música Como eu quero, do Kid Abelha.

Escrita por Leoni e Paula Toller, Como eu quero fez um tremendo sucesso nos anos 80, cantada na voz de Paula Toller. Na versão original, a impressão que se tem é de um reforço a um hino de amor:

Uuuuhhhh, eu quero você, como eu quero

Ou, em outras palavras: “Ah, eu quero você tanto…”

No entanto, se você vir a letra e parar pra pensar nela, vai ver que a música não trata bem disso. Em várias passagens, fica claro que a relação não é nada doce, como a voz de Paula Toller sugere ao ouvinte.

Logo no começo, uma ordem:

Tira essa bermuda que eu quero você sério

Em seguida, uma advertência:

Solos de guitarra não vão me conquistar

Para depois, fulminar de vez o sujeito

O que você precisa é de um retoque total

Vou transformar o seu rascunho em arte final

E, pra terminar, uma sentença:

Agora não tem jeito, você tá numa cilada

É cada um por si, você por mim

E mais nada…

A relação, portanto, não é de amor perdido, mas de dominação, mesmo.

Tempos depois, quando Leoni resolveu gravar o seu acústico, acho que ele quis tirar essa história a limpo. Começou cantando-a na mesma balada da versão original. Do nada, diz: “Cantada assim, parece uma música delicada, né? [Vou] Cantar de outro jeito. Vocês vão entender do que ela trata”.

Vendo-o cantar, fica claro que quando o refrão canta Eu quero você como eu quero, o sentido da frase não é: “Ah, como eu quero você”, mas, sim, “Olha: eu quero você como eu quero”. Ou seja: eu quero você do jeito que eu quero.

Pra quem duvida, abaixo vai o vídeo dele cantanto a música, supostamente como se deve (mas, se vocês quiserem saber, eu prefiro a versão “original”):

Ana O. tinha razão. Provavelmente só não imaginava que o adágio servisse também à música. De todo modo, fica o crédito pela conclusão derivada.

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