Crônica de uma briga anunciada

Quando saiu a decisão do STF a respeito da união estável entre homossexuais, escrevi por aqui que o Supremo fez isso atendendo aos apelos dos politicamente corretos. Nada contra a causa; muito pelo contrário. Mas o texto da Constituição é claro como água:

“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

Salvo a possibilidade de alguém querer defender que “homem” e “mulher” sejam conceitos indeterminados, é impossível efetuar qualquer operação de interpretação apta a desvirtuar conceitos etimológicos incontroversos. O problema não é de Direito, é de português, mesmo. Homem é homem, como já dizia o grande filósofo Falcão; e mulher é mulher. Ponto. Não dá pra ir além disso.

Na verdade – e isso ficou muito claro na sessão de julgamento -, o que o Supremo fez foi reescrever a Constituição. Fê-lo movido pela inércia do legislador, é verdade. Entretanto, cumpriu um papel que não lhe compete. Ao Congresso é que é conferida a função de criar normas e, eventualmente, modificar a Constituição. Ao Supremo, o papel de interpretá-las. Se o Congresso não vota as alterações justas e necessárias, paciência. Aí estão a sociedade, a imprensa e – por que não dizer? – os lobbies para pressioná-lo. Mas fazer com que o Supremo possa, na falta do legislador, substituir-se a este, conduz-nos a um perigoso rumo de insegurança jurídica.

E foi justamente baseado nesses argumentos que o juiz Jeronymo Pedro Villas Boas, de Goiás, mandou cancelar o registro de união estável de um casal homossexual goiano. Villas Boas foi no ponto: a decisão do STF “ultrapassou os limites” e é “ilegítima e inconstitucional”.

Obviamente, caiu o mundo em cima dele depois disso. A OAB – sempre ela – veio chamar a decisão de “retrocesso moralista”. E os patrulheiros de plantão já vieram xingar o juiz de “preconceituoso”.

Um juiz que respeita o texto constitucional não pode ser chamado de “moralista”. Apontar o dedo pra cima e dizer que o Supremo errou ao não cumprir a Constituição está longe de configurar um retrocesso. Retrocesso ocorre quando o país submete-se e aceita passivamente que 11 ministros não eleitos passem a tutelar e a ditar a agenda política do país.

Villas Boas foi macho – “macho”, aqui, em todos os sentidos. Devia saber que, comprando a briga com o STF, sujeita-se à perseguição dos patrulheiros e daqueles que enxergam no seu ato de respeito à Constituição uma “desobediência” e um “desrespeito” à mais alta Corte do país.

Logo, logo, vai aparecer algum “çábio” propondo que se leve o caso do juiz ao CNJ. Mais uma vez, participaremos de um teatro burlesco. Ao CNJ não cumpre rever decisões judiciais. Se a decisão está errada, recorra-se ao tribunal competente. Fora disso, estamos falando de patrulhamento e cerceamento da liberdade de decidir dos juízes. E coitado do país onde os juízes têm que pensar duas vezes antes de decidir um caso rumoroso.

Pode parecer trivial, mas o final desse caso dirá muito do país que teremos nos próximos anos.

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10 Responses to Crônica de uma briga anunciada

  1. Avatar de Kellyne Kellyne disse:

    Pois é, Arthur, essas questões são sempre difíceis e polêmicas. De fato, concordo que o STF ultrapassou os limites de sua competência (e nem os próprios ministros fazem muita questão de esconder sua consciência disso), mas fico pensando: o outro lado da moeda é que também parece grave o risco para a segurança jurídica se os juízes singulares começarem a reavaliar a constitucionalidade das questões já decididas pelo STF e desconsiderar seu efeito erga omnes. Será que é o próprio judiciário, em sua formação de base, que tem que controlar sua alta cúpula? (essa ficou parecendo uma daquelas famosas perguntas sem resposta hehehe) A verdade é que, enquanto o legislador não resolver acordar e ocupar o espaço que lhe é cabível no Estado, estamos em perigo. E vamos acompanhando as cenas dos próximos capítulos… Bjos

    • Avatar de arthurmaximus arthurmaximus disse:

      Good point, my dear. Mas acho que isso é um sintoma dessa atuação “ativista” do STF. Quando começam a se valer muito do ditado que diz que o “Supremo erra por último”, a legitimidade do STF pega o caminho do brejo. Justamente porque é (ou seria) um órgão que se legitima pela fundamentação de suas decisões. Quando as decisões começam a entrar numa seara de (des)fundamentação discricionária total, começam a surgir vozes que colocam em xeque a atuação da Corte. A meu ver, o culpado pela balbúrdia é o próprio STF, pois, se tivesse se adstrito aos termos da Constituição, um juiz assim, “mais saidinho”, seria certa – e justamente – execrado. Não teria qualquer apoio. Como você disse, resta-nnos aguardar as cenas dos próximos capítulos, hehehe. Beijos.

  2. Avatar de Ana O. Ana O. disse:

    Acho que o juiz de Goiás andou conversando com o Old Blue Eyes por aí.

  3. Avatar de Ana O. Ana O. disse:

    Compartilho das inquietações da Kellyne, mas não acho que isso seja caso de CNJ.
    De toda forma, nos tempos de hoje, tem de ter muito peito para nadar contra a corrente…

    • Avatar de arthurmaximus arthurmaximus disse:

      Bota peito nisso. Por isso disse que o juiz tinha que ser macho. Só espero agora que as Associações de Magistrados não se sujeitem à patrulha e acabem ficando do lado “politicamente correto” e, por isso mesmo, politicamente mais fácil e menos custoso.

  4. Avatar de César Mourão César Mourão disse:

    Meu caro Maximus, suas observações sem preconceitos e corajosas pouco são imitadas. Os poucos que censuraram publicamente a malsinada decisão do STF o fizeram com um viés ideológico,( no sentido de alienado da realidade). Sua análise, apresentada antes da decisão legítima e inquestionavelmente constitucional do citado juiz, foi no caminho que os demagogicamente corretos se recusam a seguir: o do respeito ao ordenamento jurídico em vigor, o que não significa que, por vias legais, não possa ele ser alterado… Pelo Legislativo, de preferência, se assim se fizer necessário.

    • Avatar de arthurmaximus arthurmaximus disse:

      Pois é, Comandante. A questão toda é essa: mudança – se necessária – dever vir do Legislativo, não do Judiciário. Deve-se reconhecer, no mínimo, que o juiz foi muito corajoso ao tomar a direção do nado contra a corrente. Um abraço.

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