Cenas de um crime contra a cidade

O dia? Domingo de carnaval. O local? um barzinho qualquer dessa cidade abandonada por Deus. Quem estava presente? Este que vos escreve, Ana O. e nosso dileto FB.

FB, crítico contumaz, ácido nos comentários, chegara bufando:

“O mundo está perdido! Vai tudo acabar em 2012, mesmo! A humanidade não tem salvação! Quero mais é que todo mundo se exploda!”

Aturdidos, eu e a Ana O. perguntamos:

“Ué? Mas o que foi que aconteceu dessa vez?”.

FB não titubeou na resposta:

“Não foram reeleger o Tasso, deu nisso! Lembra aquele terreno ali na esquina da Santos Dumont com a Virgílio Távora (NR: vulgarmente conhecida como Estados Unidos)? Pois é. Derrubaram tudo, lá. Não deixaram nada. Nada mesmo!”

Sim, nós nos lembrávamos. Na verdade, tínhamos passado o sábado de carnaval discutindo sobre isso. E, àquela altura, nada podíamos fazer.

Pra situar quem é de fora e está boiando:

Numa área nobre da cidade, entre duas avenidas bastante movimentadas (Santos Dumont e Virgílio Távora), ficava a sede da Holding do ex-senador e ex-ex-ex-Governador Tasso Jereissati. Construção antiga, do tempo em que a cidade situava-se ainda uns 10 quilômetros a oeste, o terreno parecia deslocado numa cidade que se acostumou à paisagem de cimento. Verde. Muito Verde. Um quarteirão inteiro (10 mil m2) praticamente intocado, a salvo da sanha sarracena dos “empreendedores” imobiliários da cidade.

Mas o que era bom não poderia durar muito.

Há algum tempo, noticiava-se que o Grupo Jereissati pretendia se desfazer do terreno. E assim foi feito: o empresário Beto Studart comprou o terreno, e nele pretende “edificar” (nunca a utilização semântica de um verbo teve tanto “significado”) algumas torres comerciais. Mais cimento. Mais trânsito. Mais estresse pra quem vive em Fortaleza.

Aproveitando que metade de Fortaleza vai embora no carnaval (a outra metade fica em casa dormindo), as máquinas do grupo BSpar rodaram incessantemente no sábado e domingo mominos. Abaixo, um vídeo com as cenas:

O que um sujeito cuja fortuna é avaliada nas centenas de milhões de reais pretende fazer com mais R$ 30 mi (estimativa do preço de venda do terreno) é algo que desperta a curiosidade. Mais curioso ainda é imaginar onde esteve a Prefeitura de Fortaleza durante todo esse tempo.

Pra quem não conhece, Fortaleza é uma das capitais do Brasil com menor índice de área verde por habitante quadrado.  E isso porque se conta o Parque do Cocó, uma área de manguezal que tem lá sua importância, mas que vive descuidado e cuja área efetivamente aproveitável pela população é mínima.

Do centro da cidade até a Unifor, na parte leste, contam-se apenas três praças: Luíza Távora, Praça Portugal e Bosque Eudoro Correia. Todas as demais, que existem no planejamento urbano da cidade e nos modelos de loteamento registrados nos cartórios, “sumiram”. Viraram arranhas-céus ou centros comerciais. (Por essas e outras é que às vezes as pessoas têm dificuldade em conseguir empréstimos imobiliários por aqui; a documentação dos terrenos é toda irregular).

Ora, mas se Fortaleza tem tão pouca área verde e se tem tanta carência de espaços públicos, por que a Prefeitura não desapropriou a área e fez dela uma nova praça, bem no novo “coração” da cidade?

Boa pergunta.

Há pouco tempo, no final do ano passado, noticiou-se que o Campo do América seria leiloado pelo INSS.

O Campo do América é um campo de futebol desgramado (literalmente). Ao seu redor, uma das “comunidades” mais miseráveis de Fortaleza. 11 em cada dez sons de carro roubados na Aldeota são encontrados por lá. Drogas também rolam, aos montes, pra quem estiver disposto a pagar. Tudo isso y otras cositas más.

Pois bem. A Prefeita da cidade subiu nas tamancas. “Ninguém vai leiloar o Campo do América! Aquela é uma área de interesse da cidade! Vamos fazer de tudo pra impedir essa venda!”

Seria de se esperar que, no caso do terreno da Holding Jereissati, fizesse o mesmo. Aliás: seria de se esperar que fizesse pior, já que o dono é seu arquiinimigo Tasso Jereissati. Se Luiziane tentara impedir a construção da Torre Iguatemi (queria até mesmo propor um plebiscito pra revogar a licença que a própria Prefeitura concedera), por que não imaginar que saísse em defesa da cidade, mais uma vez?

Quem ficou esperando, fez papel de otário. Como sempre.

Quando Luiziane bradou contra o leilão do Campo do América, jogava um jogo de cartas marcadas. Pra quem via de fora, Luiziane agiu com coragem, mostrando força. Olhando a fundo, talvez a coisa não fosse bem assim.

Pertecendo ao INSS, o Campo do América estava sujeito a pressão política. Bastaria um telefonema a Brasília e pronto: o leilão seria cancelado. Com números como munição e um aparelho como artefato, Luiziane fez a sua guerra.  Arrastou as fichas para o pano verde e levou: o leilão foi suspenso. O engraçado é que, segundo a imprensa, o Município entraria num “acordo” com o INSS, pagando o valor que ele pretendia arrecadar com o leilão. Sinal do dinheiro, até agora, ninguém sabe, ninguém viu.

Com o terreno de Tasso Jereissati, a parada era mais difícil. Contra um terreno privado, de inimigo político ainda por cima, números e telefone não fariam muita coisa. Aliás, é nisso que o inacreditável Fábio Campos sustenta a escusa absolutória da Prefeitura: o terreno era privado. O Poder Público não podia fazer nada. Apenas pedir “compensações” pela derrubada das árvores (O grupo BSpar diz que, pra cada árvore derrubada, vai plantar outras 100. Onde? Não disse ainda).

Mas efetivamente não se podia fazer nada?

Podia-se, sim. Poderia ser tomada uma medida. Uma única medida. Bem concreta, por sinal: desapropriar o terreno.

Não precisaria fazer muito mais coisa. Bastaria vontade política e um decreto da Prefeita. Facinho, facinho. Sem Câmara Municipal, sem justificativa, sem nada. Bastava alegar interesse público e pronto: num passe de mágica, o terreno passaria a ser da Prefeitura, que poderia fazer o que bem quisesse no local.

“Ah, mas aí tem que pagar!”

Bingo. “Aí tem que pagar”. E antecipadamente, pra poder se imitir na posse do terreno.

Pra quem estava se perguntando por que a brava Prefeita de Fortaleza não tirou sua capa do armário para salvar a cidade mais uma vez, aí deve estar a resposta. Grana, minha gente. Grana.

Ficamos assim entendidos: pra Prefeitura de Fortaleza, pouco importa se há poucas praças. Pouco importa se o que resta de área verde vai virar mais umas trocentas torres comerciais, residenciais ou seja lá o que for. O que interessa é ficar calada, se fingindo de morta, até a marola passar.

E vai passar?

Vai, infelizmente vai. Em outros países, seriam feitas passeatas, carreatas , manifestações. No limite, se organizaria um boicote à venda do novo empreendimento.

Nada disso vai acontecer. Fora uma ou outra reverberância numa rede social qualquer, estamos condenados a ver mais esse crime contra a cidade se perder no meio de tantos outros.

Fica no ar a pergunta: até quando agüentaremos calados?

Abaixo, uma reprodução da foto do terreno retirada de uma matéria do Jornal O Povo. Mostra-se o antes e o depois. Triste. Muito triste.

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7 Responses to Cenas de um crime contra a cidade

  1. Avatar de FB FB disse:

    Análise impecável.
    Valeu, caro amigo!
    FB.

  2. Avatar de victor landim victor landim disse:

    se o terreno fosse SEU, valendo 30 MILHOES
    voce venderia ou deixaria a prefeitura desapropriar possivelmente por uma miseria
    para fazer mais uma praca sem nenhuma seguranca na capital
    queria ver viu
    abraco

    • Avatar de arthurmaximus arthurmaximus disse:

      Meu caro Victor, como diz o ditado, “se meu avô usasse saia, seria minha avó”. Mas vamos lá. SE eu fosse bilionário como o Tasso, 30 milhões a mais ou a menos não fariam diferença. Faria como faz a elite americana, que doa parte de seu patrimônio ao povo, na forma de universidades, fundações e – por que não? – praças. Em segundo lugar, desapropriação é um ato de império do Estado. Eu não poderia fazer nada contra, salvo discutir o preço. Bastaria à Prefeitura dizer que queria desapropriar e pronto. Não poderia fazer nada contra isso. Agora, se praça ia ser segura ou não, é outra história. A experiência comprova que praças bem localizadas e com a saudável presença do cidadão comum conseguem impedir que os espaços públicos tornem-se viveiros de marginais. Vide o exemplo da Praça dos Amigos, no Cocó. Um abraço.

  3. Avatar de Soraia Soraia disse:

    Não se trata de desvalorizar uma benfeitoria social pelo mal uso que dela fazem. As praças são iminentemente “amigas” da cidade, da vida coletiva, comunitária, da qualidade de vida, elas propiciam espaço de lazer, prática de esportes, convivência salutar que faz as pessoas não conservarem o contato com sua face humana, de troca e relação com outra pessoa, ou seja, as praças propiciam ligação, relacionamentos e bem estar. Num país em que a taxa de ocupação de apartamentos por pessoas sozinhas aumenta a cada ano sensivelmente, é um trunfo para impedir a total segregação e solidão humanas. Além disso, os principais problemas sociais contemporâneos ocorrem quando os interesses de pessoas que tem bilhões ultrapassam e desprezam o interesse da coletividade, ou seja, podem destruir o nosso jardim, porquê com 30 milhões a mais ele poderá ter o jardim mais suntuoso que existir e mais, totalmente PARTICULAR! Então, acho que precisamos questionar e analisar os fatos à luz dos direitos e da defesa da qualidade de vida de todos e não em função de uma ordem social perversa e de uma moral em que predomina o interesse individual e a ganância à custa da vida das pessoas em geral e da preservação do meio ambiente. S.C. R.

  4. Avatar de Atila Oliveira Atila Oliveira disse:

    Amigo, como está hoje, passados quase 7 anos, esse terreno ? O que é que foi construido na área da esquina da Santos Dumont com a Virgilio Távora ?
    Outra coisa que seria bom pesquisar: aonde foram plantadas as árvores que o Beto Studart prometeu plantar para compensar o dano ambiental ?
    As respostas a essas perguntas pode ser um assunto de um post que o amigo pode escrever. Fica a sugestão.
    Grande abraço
    Atila

    • Avatar de arthurmaximus arthurmaximus disse:

      Continua da mesma forma, Atila. Já houve vários projetos realizados para a área, mas nenhum deles foi levado a cabo. Das árvores do Beto Studart, não tenho a menor idéia. Infelizmente. E, de fato, pode ser um bom tema para novo post. Obrigado pela sugestão. Um abraço.

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