Interlúdio poético

Agora que fui reparar que não há de poesia por aqui.

Quando era mais jovem, uma das minhas diversões pra entreter a mente e matar o tédio era decorar letras de músicas. Assim como quase todo mundo da época, decorei Legião Urbana (Faroeste Caboclo, Eduardo e Mônica), Engenheiros, Titãs, Paralamas e uma longa lista de etc.  Quanto às músicas em inglês, havia ainda a vantagem de treinar a pronúncia e o ouvido na língua bretã.

Mas, como tudo cansa, resolvi me embirocar por outras paisagens. E comecei a decorar textos de poesia.

Um dos melhores poemas que eu já li è Cântico Negro, de um português chamado José Régio. É um monumento à liberdade, à libertação das amarras em que a religião e a sociedade querem enfiar você. Daí o verso: “Ninguém me diga: “Vem por aqui””.

O caminho a construir é responsabilidade única e exclusivamente sua. E se você não tomar as rédeas da sua vida, alguém vai querer fazer isso por você. Por isso ele conclui:

“Não sei por onde vou. Não sei para onde vou. Só sei que não vou por aí”.

Abaixo, o poema na íntegra:

Cântico negro

José Régio


“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

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1 Response to Interlúdio poético

  1. Avatar de Amaral Amaral disse:

    Interessante … para se refletir, pois o próprio autor nos dá a dica “Sei que não vou por aí”. Abç

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