Conforme já referido aqui pelo menos um par de vezes, uma das vantagens de você ter um Blog só seu é a liberdade para definição da pauta. Em um espaço tão eclético como o Dando a cara a tapa, é sempre uma felicidade quando se consegue combinar duas seções diferentes para tratar de um mesmo assunto. Neste caso, História e Direito reúnem-se para explicar um episódio político-jurídico responsável por boa parte da desgraça pela qual passamos hoje em dia: a famigerada “Lei Fleury”.
Sérgio Fernando Paranhos Fleury foi um bandido. Desde sempre. Mesmo antes de tornar-se nacionalmente conhecido como ícone da repressão torturadora dos porões, Fleury trabalhava vendendo “proteção” a quadrilhas de tráfico de drogas. Numa briga, digamos, “societária” entre dois barões do tráfico, Juca (José Iglesias) e Miroca (Waldemiro Maia), Fleury tomou o partido de Juca e foi em busca de Luciano (Domiciano Antunes Filho), que tinha consigo a caderneta de contabilidade da propina distribuída aos policiais.
Fleury e mais quatro capangas encontraram Luciano e levaram- no até o quilômetro 32 da rodovia Castello Branco. Fizeram-no descer do carro de pois metralharam-no, desfazendo-se do seu cadáver numa vala comum. Qual o problema? Carioca (Odilon Marcheroni de Queiróz), que denunciara a localização de Luciano, contou tudo à polícia. Por via das dúvidas – seguro, afinal, morreu de velho –, resolveu contar o que vira também à televisão.
Duas semanas depois, logo após a edição do AI-5, a repressão prendeu Carioca e o entregou a Fleury. O delegado levou o preso até a casa de Fininho (Adhemar Augusto de Oliveira), um investigador da Polícia Civil. No dia seguinte, Carioca deu uma entrevista aos jornais paulistas renegando tudo que dissera. Depois disso, nunca mais se ouviu falar na figura. Tempos depois, Fininho contou a um jornalista que matara Carioca com um fio de náilon passado pelo pescoço. Como “prêmio”, carregava parte da língua do defunto em seu chaveiro. Uma “lembrança” para quem se aventurasse novamente a denunciar os desmandos dos meganhas.
Fleury fez-se famoso sobretudo depois do assassinato de Carlos Marighella. Fundador da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Marighella era um dos inimigos públicos número 1 do regime. Comunista e guerrilheiro, Marighella cabia perfeitamente no figurino da “ameaça vermelha” que os milicos usavam para vender a tortura e a repressão como preço a pagar pela “segurança da família brasileira”.
Numa tocaia noturno, o próprio Fleury saiu das sombras disparando seu 38 contra Marighella. Desferiu-lhe cinco tiros. No estádio do Pacaembu, no intervalo de um partida entre Corinthians e Santos, o alto-falante anunciou: “Foi morto pela polícia o líder terrorista Carlos Marighella”. Peça útil do esquema de repressão, Fleury foi subitamente alçado à condição de herói do regime.
Como o regime sabia premiar quem lhe prestava serviços, chegaria o momento em que o Delegado Fleury cobraria sua fatura. Depois de anos de batalha árdua e solitária, Hélio Bicudo, um promotor obstinado, encurralara o ícone da meganha. Com dezenas de acusações de tortura e de assassinatos do seu esquadrão da morte, era apenas questão de tempo até que o Delegado Fleury passasse para o outro lado do balcão e fosse enfim preso.
De acordo com o texto original do Código de Processo Penal, toda vez que um sujeito fosse acusado de homicídio, encerrada a primeira fase do rito do júri, o juiz, ao pronunciar o réu, “recomendá-lo-á na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para sua captura” (CPP, art. 408, §1º)
Preso, Fleury certamente colocaria a boca no trombone. A hipótese de ter um de seus agentes mais “prestimosos” indo para atrás das grades era um risco grande demais para os militares correrem. Sabendo disso, os milicos correram para livrar o delegado da cadeia.
Veio, então, a famosa “Lei Fleury”. Agora, se o réu fosse “primário e de bons antecedentes, poderá o juiz deixar de decretar-lhe a prisão ou revogá-la, caso se encontre preso” (CPP, art. 408, §2º, com a redação da Lei nº. 5.491/73). Não bastou ao regime apenas proteger um notório facínora. Foi necessário mudar a lei para garantir a sua impunidade.
Sabendo de tudo isso, é no mínimo engraçado ver gente até hoje defender que, durante a ditadura, havia mais “segurança”, pois “a lei valia para todos”. Quem fala uma asneira dessas, das três, uma: 1) é lambe-botas de milico; 2) é um completo ignorante em História do Brasil; ou, o que é mais provável, 3) pensa que os outros são idiotas. A farsa do mote “na ditadura era melhor”, portanto, não sobrevive a dois minutos de aula de História.
É o que se espera que a juventude de hoje entenda na hora de votar…