Não foi por falta de aviso.
Apesar das alegações de que tudo aquilo era “discurso de campanha” e que ele iria “moderar” depois de assumir novamente a Casa Branca, Donald Trump está fazendo exatamente o que propunha desde o início: espalhar caos e desordem. Esse é o contexto no qual se insere a guerra tarifária aberta pelo Nero Laranja contra o mundo em geral, e contra a China, em particular. O problema, como ensina o Conselheiro Acácio, é que as consequências vêm depois.
Apresentada como uma “Declaração de independência econômica” dos EUA, a guerra tarifária não passa de um exercício de retórica e contradições que expõe mais fragilidades do que fortalezas. A começar pela própria forma com a qual foram determinadas essas tarifas. Numa proposição bizarramente simplória, pegou-se o déficit dos EUA com determinado país e dividiu-se pelo total de exportações desse país para os EUA. Foi assim que uma ilha perdida no meio do Oceano Índico (Heard and McDonald), habitada por focas e pinguins, saiu do tarifaço indiscriminado com uma taxa de 30% sobre suas exportações, mesmo tendo participação nula no déficit de US$ 1 tri exibido pelo Tio Sam.
É importante destacar que a estrutura hoje existente no mercado global foi definida e praticamente imposta pelos próprios Estados Unidos ao longo de todo o pós-II Guerra. Os Estados Unidos mantêm uma balança comercial cronicamente deficitária porque consomem muito mais do que produzem, cortesia de um mercado interno robusto e do fato de o dólar ser a moeda de reserva mundial. Ao contrário do que Trump quer fazer crer, é esse mesmo déficit que sustenta a hegemonia americana: os países que exportam para os EUA acumulam dólares, que reinvestem em títulos do Tesouro norte-americano, financiando o consumo e o endividamento do país. Em outras palavras, o mundo literalmente paga para que os EUA continuem importando — um sistema de negócios que Trump parece desconhecer em nome do slogan America First.
Por trás da retórica belicosa, havia uma estratégia arriscada. Trump apostou que o aumento de tarifas forçaria uma recessão controlada, permitindo ao Federal Reserve reduzir as taxas de juros e facilitar a rolagem de um terço da dívida pública americana, que vence agora em 2025. A estratégia, porém, desmoronou quando a China — maior detentora de títulos do Tesouro dos EUA — iniciou a venda maciça de seus ativos em dólar. O movimento elevou os juros de longo prazo, justamente o oposto do que o Laranjão esperava. Ao invés de aliviar o custo da dívida, os EUA viram os mercados financeiros entrarem em parafuso: as bolsas de valores de lá tiveram a pior semana desde o crash da Covid, em 2020.
Ameaçado pela perspectiva de uma espiral recessiva que lembrava a Grande Depressão de 1929, Trump recuou. Obcecado pela própria imagem, o Laranjão e seus acólitos tentaram vender o recuo como algo planejado e esperado. Houve diversas referências inclusive ao livro supostamente escrito por Trump – The art of the deal (A arte da negociação) – um monumento à autopromoção de um ego marcado profundamente pelo narcisismo. Mas que ninguém se engane. O Nero Laranja não recuou por pragmatismo, mas por puro desespero.
O recuo, porém, não foi completo. Apesar de suspender as tarifas contra o restante do mundo, Trump elevou as tarifas sobre produtos chineses a 125%. Por quê? Porque a China, hoje, é o único país a desafiar a supremacia tecnológica e comercial dos EUA. A resposta chinesa foi cirúrgica: tarifas retaliatórias direcionadas a setores sensíveis para a base eleitoral de Trump, como a agricultura, e uma campanha diplomática para fortalecer alianças com países como o Brasil, que, mesmo taxado em 10%, vê na China uma alternativa para escoar commodities como soja e carne.
As implicações geopolíticas desse desastre autoinfligido são profundas. A União Europeia, outrora aliada próxima, agora acelera o acordo comercial com o Mercosul para reduzir dependência dos EUA. O Canadá, cujo primeiro-ministro declarou o fim da “integração econômica” com os EUA, retaliou com tarifas sobre produtos como uísque do Tennessee e carros da Tesla. Enquanto isso, o Brics surge como contraponto, com o Brasil buscando diversificar parceiros e a Rússia — curiosamente poupada das tarifas de Trump — reforçando laços energéticos com a Ásia. O mundo, em suma, não está se rendendo ao protecionismo americano; está se reorganizando para contorná-lo.
O comportamento errático do Nero dos nossos tempos transformar a instabilidade em seu maior “legado”. O espetáculo grotesco de Trump chantagear o planeta com tarifas e depois recuar com o rabo entre as pernas diante do colapso que ele mesmo provocou, seria cômico se não fosse trágico. Esse vai-e-vem de decisões — celebrado por ele como “gentileza” — mina a credibilidade internacional dos EUA. Se um país pode alterar as regras do jogo comercial de forma unilateral e imprevisível, por que confiar em sua moeda?
É sempre bom lembrar que o dólar, como base do sistema financeiro global, depende da percepção de estabilidade institucional americana. Quando o próprio presidente desdenha acordos multilaterais e trata a política econômica como um reality show, com reviravoltas diárias, investidores começam a questionar se os títulos do Tesouro ainda são o safe haven de outros tempos. O Laranjão, é claro, culpa os democratas, os “globalistas” e até os illuminatti pela turbulência financeira. Mas a crise tem nome e sobrenome: Donald Trump.
Trump, em sua cruzada para “tornar a América grande de novo”, conseguiu o improvável: transformou o dólar em um ativo tão volátil quanto seus tuítes. Seu legado? Um mundo em que America First soa menos como slogan patriótico e mais como manual de como alienar aliados e fortalecer rivais. A ironia é que, ao tentar ressuscitar a glória dos anos 1950, o Nero Laranja acaba por pavimentar o caminho para que a China venha a brilhar nos anos 2050.
Quem diria que a arte da negociação incluiria vender a própria credibilidade em liquidação?