Recordar é viver: “Os cadáveres insepultos da ditadura”

E não é que, doze anos depois, enfim o Judiciário resolveu comprar essa briga?

A despeito da demora, só nos resta dar os parabéns ao Ministro Flávio Dino pela coragem de enfrentar esse tema.

É o que você vai entender, lendo.

Os cadáveres insepultos da ditadura

Publicado originalmente em 8.3.12

Ontem saiu a notícia de que o Ministério Público Federal resolveu criar um grupo de trabalho destinado a investigar e, eventualmente, denunciar à Justiça os crimes cometidos pelos militares durante a última ditadura brasileira. Depois do triste episódio da censura ao Houaiss, essa não deixa de ser uma boa notícia.

Dos países latino-americanos que vivenciaram ditaduras, o Brasil é o único em que se pretendeu colocar simplesmente uma pedra em cima do assunto com o aviso: “Favor não remover”. Todos os outros países, do Uruguai ao Paraguai, passando por Argentina, levaram seus militares às barras de um tribunal e fizeram justiça ao seu passado.

Aliás, a tática de avestruz já foi denunciada à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por negligenciar a investigação e punição de crimes como a tortura, os quais, como crimes contra a humanidade, devem ser condenados por todos os países signatários do tratado.

Há um obstáculo relevante, porém. Salvo engano em 2007, o Supremo Tribunal Federal julgou uma argüição de descumprimento de preceito fundamental contra a Lei da Anistia, de 1979. Naquela ocasião, dizia-se que a Constituição Federal de 1988, ao repudiar e considerar imprescritíveis e insusceptíveis de graça ou anistia, simplesmente não recepcionara o perdão concedido à época. Em português claro: a anistia fora revogada pela Constituição, e todos aqueles que cometeram crimes durante a ditadura – inclusive os grupos armados de esquerda, ressalve-se – deveriam ser processados e punidos.

Por maioria, o Supremo rejeitou o pedido da ação, dizendo que a anistia decorrera de um pacto social pela redemocratização do país. Além disso, uma vez concedida a anistia, não se poderia voltar atrás no tempo e desfazê-la para processar quem cometeu os crimes. Seria, mais ou menos, uma expressão de direito adquirido.

Se é assim, como admitir que o grupo do MPF venha agora a investigar os crimes cometidos durante a ditadura?

Simples: alguns dos crimes cometidos pelos agentes do governo são “permanentes”, isto é, são crimes cuja consumação se protrai no tempo. O homicídio, por exemplo, é instantâneo. O sujeito atira, o outro morre, e o crime está consumado. Mas crimes como o seqüestro, por exemplo, são diferentes. A cada dia que o sujeito permanece sob custódia involuntária do seqüestrador, o crime está se consumando.

Quais as conseqüências práticas disso?

Em primeiro lugar, se o crime é permanente, o flagrante dá-se a qualquer tempo. Se o sujeito mata o outro, se esconde e passa algum tempo fora do raio da polícia, não pode mais haver prisão por flagrante. Se há um seqüestro, em qualquer dia no qual a polícia estoure o cativeiro, estará consumado o flagrante.

Em segundo lugar, o prazo de prescrição segue regime diferenciado. De novo no exemplo do homicídio, o prazo começa a correr desde quando houve a morte da vítima. No seqüestro, o prazo só começa a correr quando cessar a consumação, é dizer, quando a vítima for liberada. Assim, se o sujeito mantiver o outro seqüestrado por 30 anos, soltá-lo num dia e um mês depois for preso, não poderá alegar prescrição com base no fato de que o seqüestro ocorreu há 30 anos. Basta provar que a vítima só foi liberada há 30 dias.

Em terceiro e último lugar, a anistia só alcança os crimes praticados até 1979. Portanto, no caso dos crimes permanentes, mesmo depois da anistia os crimes continuaram sendo cometidos, dia após dia. Por isso, o perdão histórico não alcançaria os que praticaram crimes dessa natureza.

E o MPF com isso?

Simples: como há pessoas que foram seqüestradas na ditadura e cujos corpos jamais apareceram, os agentes responsáveis pelos crimes continuariam, até hoje, praticando os mesmos crimes. Por isso, poderiam ser processados e punidos, sem poderem contar com o benefício da anistia.

Engenhosamente, o MPF desenvolveu essa argumentação para justificar o levante da pedra. Dribla-se, a um só tempo, a prescrição e a decisão do STF. Resta saber agora se o Judiciário resolverá comprar a briga. A conferir.

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