Brega é chique

O Ceará sempre foi um filho meio enjeitado da música popular brasileira. Luiz Gonzaga, por exemplo, se projetara ao cenário nacional depois de sair daqui, mas era pernambucano de Exu. Raimundo Fagner só explodiu mesmo depois de ver sua versão de Canteiros cantada em parceria com Tom Jobim. E Ednardo é até hoje lembrado nas rádios somente por Pavão Misteryoso.

Uns mais, outros menos, mas o fato é que nem Fagner nem Ednardo produziram um gênero musical genuinamente cearense. A despeito da temática local, seu estilo musical era todo MPB. Os toques regionais que imprimiam não eram suficientes para caracterizar um estilo diferente do tocado no Rio ou em São Paulo. Além disso, ambos explodiram nos anos 70, tiveram o auge entre o final da década e meados dos anos 80, e depois pouca coisa surgiu de interessante na música cearense.

No entanto, no começo dos anos 90, o Ceará e o Brasil seriam surpreendidos por uma figura extravagante, séria na sua comicidade, cáustica na sua irreverência: Marcondes Falcão Maia, ou simplesmente Falcão.

Arquiteto falhado, músico (quase) falhado, Falcão não era nenhum Manuel Bandeira, mas, sem querer, mudou para sempre o panorama musical brasileiro ao elevar à categoria de Pop um gênero musical então rejeitado e menosprezado: o Brega.

Até então, o Brega era tido como uma música decadente. Seu melhor retrato eram os barzinhos derrubados da periferia, onde pobres almas dependentes do álcool afogavam as mágoas da última traição sofrida ao som de Garçon, de Reginaldo Rossi. Nada naquilo poderia inspirar outro sentimento senão o de pena e decepção.

Pois Falcão fez o exato oposto. Com seus trajes extravagantes, seu linguajar desbocado e seu jeito irreverente, Falcão transformou o que era tristeza em alegria. Brega passou a ser sinônimo de alegria e irreverência, representações típicas da mais genuína alma cearense.

Verdade seja dita: Falcão não tinha pretensões contestadoras na sua música. Quer dizer, Falcão não pretendia fazer protesto político a partir da ironia, como insinuara nos anos 80 o Ultraje a Rigor. Sua música era principalmente provocar e anarquizar modelos comportamentais de uma sociedade hipócrita.

É o caso, por exemplo, de seu primeiro grande “hit”: Um bodegueiro na FIEC. A música é o retrato mais perfeito do novo rico que ascende socialmente e renega seu passado, inclusive sua mulher. Falcão canta:

Você não faria a menor falta
Num dia de domingo no Beach Park
Eu não te levaria nem morta
A passear comigo no Iguatemi
Eu não me atreveria a passar vexame
Perante os meus amigos lá da Aldeota
Pois agora eu tenho o maior respaldo
Nas altas paneladas da alta sociedade

E, para terminar, uma sentença de morte na hipocrisia social da provinciana elite cearense:

Eu sei que a burguesia fede
Mas tem dinheiro pra comprar perfume
E além do mais o high society
Leva chifre e não tem ciúme
Eu sou “in”, não sou “out” – eu sou VIP

Mesmo assim, na parte política, Falcão também dava suas cacetadas. Do mesmo disco (Bonito, lindo, joiado), uma crítica àcida à política habitacional do Governo, feita quase sempre por meio da Caixa Econômica Federal. Na propaganda, casas perfeitas e bem acabadas. Na prática, abrigos mal improvisados construídos no fim do mundo. Ou, como ele mesmo diz, na casa do c….

Também do mesmo LP vinha Sou mais no tempo do Figueiredo, na qual Falcão sarcasticamente enuncia a desgraça provocada pelos pacotes do FMI ao país. Falcão dizia:

Quero deixar registrada minha gratidão
A essa grande organização denominada FMI
Composta de homens íntegros e justiceiros
Que em matéria de dinheiro
É só quem sabe administrar

Depois disso, Falcão sentenciava:

Vou-me embora desta terra
Let’s go negrada
Se um dia eu me der bem
É mesmo que nada

Mas o forte mesmo da música brega de Falcão é a crítica a padrões sociais despropositados. Em A cura da homeopatia pelo processo macrobiótico, o cearense ironiza as “dietas” milagrosas vendidas como santo remédio por aí afora, e, por tabela, também a ditadura da magreza como padrão de beleza.

A história começa com um sujeito que vivia “triste, ingriziado, moribundo, empanzinado” porque só comia “folha de pau, raiz e vagem, mel de abelha e gergelim, arroz integral, bife de soja, pepaconha, chá de boldo e própolis”. A situação só começa a melhor quando ele resolve seguir os conselhos “dietéticos” de Mané Bofão, e passa a comer “panelada, buchada, sarrabulho, tripa de porco, entre otra cositas más. Como resultado, o sujeito fica “bonito, lindo e joiado”, parecendo até mesmo “um artista”.

O segundo LP de Falcão não está no mesmo nível do primeiro, mas ainda assim teve algum sucesso. Depois, o cantor cearense passou a viver apenas mais de sua persona pública e dos primeiros sucessos do que propriamente de novos lançamentos.

Tudo bem. Falcão já fez muito. Se hoje se pode dizer que há um gênero musical genuinamente cearense, esse gênero é o “Brega pop” de Falcão.

E isso não é pouca coisa.

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2 respostas para Brega é chique

  1. Mourão disse:

    Análise inteligente(redundância?) que mostra muito bem a profunda diferença de um tipo de música singular, bem diferente do Brega tradicional, a que os desavisados associam o Falcão.

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