A beleza do anonimato

Sabe aquele sujeito a quem todo mundo recorre para amarrar o guizo no gato? Pois é. Esse era o caso de Raul. No trabalho ou em casa, fossem amigos ou familiares, toda vez que a porca entortava o rabo, alguém corria atrás dele para descascar o abacaxi. Prestativo e desenrolado, o sujeito metia as caras e resolvia de boa os BOs que lhe apresentavam. Ajudar os outros era algo que realmente lhe fazia bem.

Certa feita, Carlos – companheiro de curso e ex-colega de estágio – buscou os bons préstimos de Raul para resolver uma pendenga burocrática na Faculdade de Direito. Tendo prestado mestrado numa universidade espanhola, Carlos havia protocolizado um requerimento visando ao reconhecimento do título. Segundo os trâmites da Universidade, o pedido era feito na Pró-Reitoria de Pós-Graduação e, posteriormente, enviado para parecer ao curso correspondente ao mestrado. Seis meses passados, o processo de reconhecimento ainda se encontrava dormitando em berço esplêndido na Faculdade de Direito. Foi quando Carlos recorreu a Raul:

“Bicho, eu tô com esse processo de reconhecimento rolando lá na Faculdade. Tu não conhece alguém pra tentar desenrolar isso pra mim, não?”, perguntou um ansioso Carlos.

“Cara, eu conheço o coordenador do curso, Miguel Ruiz. Foi meu professor na gradução e orientador do meu trabalho de conclusão do curso. Posso tentar falar com o pessoal lá da pós do Direito. Se eles não resolverem, eu tento falar com ele”, respondeu tranquilamente Raul.

Juiz federal, Miguel Ruiz parecia ter seguido os ensinamentos de Maquiavel: para o cidadão em posição de poder, o ideal é ser querido e também temido; mas, se tiver de escolher entre um dos dois, escolha ser temido. De índole mercurial, Miguel era conhecido por suas explosões de fúria em sala de aula, principalmente quando ouvia conversas entre os alunos durante as classes. Raul, contudo, um pernambucano de temperamento semelhante, conseguira conquistar sua amizade durante o curso. Gostavam-se, mas Raul sempre demonstrou um certo temor reverencial por ele.

Seguindo o planejado, Raul tocou o telefone para a coordenação de pós-graduação de Direito da Faculdade. Um sujeito solícito estava do outro lado da linha. Após ouvir o relato da solicitação, o funcionário informou:

“Sim, esse processo está aqui aguardando parecer”.

“Certo, mas teria alguém com eu pudesse falar a respeito dele? Porque já faz algum tempo que ele chegou aí e, até agora, nada”, insistiu Raul.

“Aguarde um momento, por favor”.

Depois de alguns segundos, um outro sujeito acorre ao telefone:

“Sim, pois não?”

Já meio sem paciência, Raul repetiu a história que relatara ao funcionário da coordenação. O cidadão do outro lado da linha respondeu:

“É isso mesmo. O processo tá aqui aguardando parecer. Mas não se preocupe, não, porque ele está caminhando normalmente”.

Avesso a desculpas esfarrapadas, Raul não se conteve e colocou pra fora toda a sua alma pernambucana:

“Mas que conversa, meu senhor?!? O processo chegou aí há seis meses! E tá parado esse tempo todo esperando o parecer! Como é que você quer me dizer que o processo tá andando normalmente?!?”

Foi quando o sujeito do outro lado da linha resolveu também subir a temperatura:

“Vamo fazer o seguinte: venha aqui falar comigo! Mas venha pessoalmente! Pode me procurar! Meu nome é Miguel Ruiz! Eu sou o coordenador da pós-graduação!”, respondeu o cidadão, usando um tom de voz a um só tempo colérico e ameaçador.

Ao tomar conhecimento da identidade do interlocutor, Raul gelou, mas pensou rápido:

“Cê sabe com quem você está falando?!?”, devolveu Raul, em tom desafiador.

“Não!!”, gritou de volta Miguel Ruiz.

“Ainda bem!”, encerrou Raul, batendo o telefone na cara do ex-professor.

E foi assim que Raul descobriu a beleza do anonimato…

Esta entrada foi publicada em Crônicas do cotidiano e marcada com a tag , , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.