O caso mais rumoroso a sacolejar o noticiário nesta semana foi, sem dúvida, a decisão da Suprema Corte do Colorado declarando o ex-presidente norte-americano, Donald Trump, inelegível para o pleito presidencial do ano que vem. Favorito para voltar à Casa Branca, pule de dez nas primárias republicanas, Trump aparentemente sofre um baque na sua campanha de revanche contra a derrota para Joe Biden em 2020.
Como todo mundo sabe, ao perder a eleição presidencial daquele ano, Donald Trump resolveu dar uma de ditador bananeiro e contestar o resultado. Montado em um ardiloso esquema de fake news e utilizando o bully pulpit do cargo, Trump fez o que pôde para impedir que seu legítimo sucessor assumisse o cargo. Todo esse degringolar antidemocrático desaguou na infame insurreição de 6 de janeiro, quando uma horda de lunáticos dementes, incensados por Donald Trump, invadiram a sede do Congresso para tentar impedir a certificação da vitória de Biden.
À falta de um Tribunal Superior Eleitoral que declarasse a figura inelegível (como aconteceu com Bolsonaro por aqui), os promotores de vários estados resolveram processar Trump com base na 14ª emenda à Constituição americana. Nela, está expressa a cláusula segundo a qual nenhuma pessoa “who having previously taken an oath” (que tenha prestado juramento) como ocupante de cargo público poderá ser eleita a um cargo de representação caso ela “have engaged in insurrection or rebellion” (tenha se envolvido numa insurreição ou rebelião) contra a Constituição.
Dito isto, a decisão da Suprema Corte do Colorado chama a atenção porque, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um cidadão é declarado inapto a concorrer ao cargo de presidente por ter se envolvido numa conspiração contra a República. Com isso, a posição de Trump como virtual favorito à Casa Branca na eleição de 2024 estaria seriamente ameaçada.
Mas será?
Antes de mais nada, deve-se entender que “Estados Unidos” não são uma marca de fantasia. São estados unidos mesmo. Conforme explicado aqui, lá na terra do Tio Sam há, de fato, um sistema federativo. Pelas regras do jogo, cada estado faz uma eleição em separado. Com exceção de dois estados (Maine e Nebraska), nos demais vigora a regra do winner takes it all, ou seja, se o cidadão vencer a eleição em determinado estado por um mísero voto, levará todos os votos daquele estado na votação do colégio eleitoral (a que realmente define a eleição presidencial).
Isso explicado, pode-se ver que, em princípio, a decisão da Suprema Corte do Colorado é bastante limitada. Afinal, ela está naturalmente circunscrita aos votos que esse estado detém no colégio eleitoral norte-americano. Como o simpático Colorado detém apenas 10 votos, em um total de 538, do colégio eleitoral, pode-se perceber que o impacto não é tão grande assim. Fora isso, apesar de classificado como swing state, o Colorado tende a votar majoritariamente com os democratas. Logo, esses 10 votos para Trump estariam perdidos de qualquer forma.
A grande dúvida, porém, é saber se mais estados seguirão essa “tendência” inaugurada pela Suprema Corte do Colorado. Caso mais estados resolvam reconhecer a óbvia responsabilidade de Trump pela insurreição de 6 de janeiro e, por isso, declarem-no inelegível no pleito do ano que vem, o jogo da eleição presidencial volta ao zero e os republicanos teriam que se coçar pra arrumar um substituto com potencial de votos semelhante ao ex-apresentador de O Aprendiz.
No entanto, ainda que esse cenário de pesadelo se materialize para Trump, convém colocar as barbas de molho. Como parece claro a qualquer um minimamente familiarizado com o sistema jurídico norte-americano, trata-se de um caso que certamente será resolvido pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Enquanto na Suprema Corte do Colorado Trump enfrentou sete juízes nomeados por governadores democratas, na Suprema Corte dos Estados Unidos ele teria, ao revés, seis entre nove juízes nomeados por presidentes republicados, metade destes seis nomeados por ele mesmo enquanto presidente. Resta, portanto, saber o que se esperar dessa composição majoritariamente conservadora da Corte.
Dê-se de barato que as três juízas indicadas pelos democratas votariam contra Trump (Ketanji Jackson, Elena Kagan e Sonia Sotomayor). Bastariam apenas mais dois votos para que ele fosse considerado inelegível pela highest court on the land, o que sepultaria em definitivo suas pretensões de retorno ao cargo de presidente.
Mas haveria, entre os seis votos “conservadores”, pelo menos dois que se inclinassem contra o autoproclamado pretendente a ditador?
Um voto possível (e, francamente, até esperado) é o do chief justice John Roberts. Nomeado por Bush Jr., Roberts era um pêndulo que se mexia de um lado para o outro quando a composição da corte estava equilibrada em 5×4 para os conservadores. Por mais de uma vez, Roberts contrariou aqueles que achavam que ele seguiria a “fidelidade” às tendências políticas que o nomearam para se juntar aos justices democratas, formando maiorias de 5×4 em favor de teses mais “progressistas”. Foi o que aconteceu, por exemplo, na votação sobre a constitucionalidade de “Obamacare”.
Cioso das prerrogativas de seu cargo e um jurista à prova de qualquer suspeita, Roberts – por mais que seja republicano – é antes de tudo um democrata. Logo, não seria nenhuma surpresa vê-lo votando para jogar Donald Trump pela janela. Isso, contudo, levaria os contrários a Trump a somente quatro votos. Restaria, portanto, ainda um para consolidar uma maioria contra o ex-presidente.
E de onde esse “um” viria?
Descartem-se, desde logo, os votos de Clarence Thomas e Samuel Alito, “heróis” do conservadorismo norte-americano e as duas vozes mais radicalmente à direita em toda a história da Suprema Corte norte-americana. Da onde menos se espera, daí é que não vem mesmo, já ensinava o Barão de Itararé. Sobrariam, portanto, apenas os três apontados pelo próprio Trump: Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. Alguma das três “criaturas” se voltaria contra o seu “criador”?
Claro que estamos trabalhando na base da mais pura especulação, mas é difícil imaginar que qualquer dessas figuras venha a contrariar o presidente que os indicou ao cargo de juiz da Suprema Corte mais poderosa do planeta. Mas basta ver o retrospecto de como cada uma dessas figuras normalmente vota para intuir o que vem pela frente. Gorsuch, por exemplo, juntou-se a Thomas e Alito para escrever uma opinião divergente contra uma decisão da Suprema Corte que declarou inconstitucional uma lei do estado de Arkansas que proibia casamentos do mesmo sexo.
De Amy Coney Barrett, discípula do falecido Antonin Scalia, uma das maiores mentes conservadores que já passou pelo tribunal, tampouco se pode esperar maiores inclinações contra Trump. Além de compartilhar da filosofia jurídica “textualista” do antigo chefe (Barrett foi assistente de Scalia por muitos anos), Barrett já mostrou a que veio, por exemplo, quando votou com a maioria para reverter Roe vs. Wade, o precedente histórico de 1973 que garantira o direito ao aborto a todas as mulheres norte-americanas.
O que sobra de esperança para os democratas, em suma, é qual vai ser a inclinação de Brett Kavanaugh. Apesar do histórico conservador, por mais de uma vez Kavanaugh deixou suas raízes de lado e juntou-se ao chief Roberts e à ala progressista para contrariar os conservadores. Mas esses pendores “centristas” seriam suficientes para fazer com que votasse contra o sujeito que o indicou para o assento que ocupa hoje? É difícil prever, mas, a preços de hoje, seria mais seguro apostar que não.
A idéia de que a justiça americana barre a candidatura de Donald Trump, portanto, tem tudo para terminar melancolicamente em um amargo 5×4 a favor do “Laranjão” de O Aprendiz. A noção de que as instituições norte-americanas seriam fortes o suficiente para barrar a candidatura de um pretendente a autocrata pode acabar exatamente como a comédia mais famosa de Shakespeare: com todo mundo pensando que estava a sonhar.