Efeito Orloff?, ou A Argentina na beira do precipício

Quem é mais velho vai se lembrar.

O sujeito senta no bar e pede uma vodka com gelo. Ao seu lado, aparece um clone seu, lépido e fagueiro. Todo pimpão, o clone manda o barman trocar a destilada pedida por uma Orloff. Ressabiado, o camarada pergunta:

“Quem é você?”

E o seu clone responde:

“Eu sou você amanhã”.

Embora a propaganda tenha sido feita para ressaltar a qualidade da vodka oferecida (que não sujeitaria o bebum a ressacas no dia seguinte), a verdade é que o agora famoso “efeito Orloff” entrou pra história como prenúncio de uma catástrofe anunciada, como se a desgraça a ser experimentada por algo ou por alguém não passasse de uma reprise ruim em um cinema decadente. Tal é a sensação de quem, no Brasil, observa o que ora se passa na nossa vizinha Argentina.

Esculhambada por quase um século de peronismo, a Nação Portenha – que ingressou no Século XX como a Suíça dos trópicos, 7ª economia do mundo, exemplo para seus pares – destrambelhou-se numa débâcle sem precedentes. Espremida, de um lado, pelo populismo mais safado e, do outro, pelo golpismo militar mais atroz, a Argentina parece condenada a repetir não só os erros do seu passado, mas, também, os erros dos seus vizinhos.

Há menos de uma semana, no que se poderia chamar de “Primárias Argentinas”, o anarcocapitalista Javier Milei surpreendeu a esquerda neoperonista e os direitistas de Maurício Macri, sagrando-se “vencedor” da disputa, com quase 30% dos votos. Assombrados, os argentinos entreolham-se e se perguntam:

“Seremos nós o Brasil de 2018?”

A pergunta não é de todo infundada e há razões de sobra para estar preocupado com a ascensão desse palhaço travestido de político chamado Javier Milei. Assim como o Brasil de 2018, a Argentina passa por um momento de profundo descrédito na política como salvação para os problemas comuns do dia-a-dia. Encalacrada em crises por cima de crises há pelo menos 25 anos, a Argentina praticamente esgotou as alternativas políticas, digamos, “tradicionais” para buscar uma saída. À esquerda, o neoperonismo de Cristina Kirchner já demonstrou por mais de uma vez sinais de esgotamento. À direita, o fracasso da gestão Macri resultou na volta da esquerda ao poder, com todos os problemas que ela trazia consigo.

É justamente em cenários assim, nos quais o cidadão olha para os lados e não enxerga saída, que costumam brotar figuras exóticas como Javier Milei. Autointitulado anarcocapitalista, Milei reúne em si todos os piores pecados da extrema-direita reacionária mundial. À cabeleira despenteada à la Boris Johnson Milei soma o negacionismo ambiental de Donald Trump e a crença na bizarra teoria do “marxismo cultural” de Jair Bolsonaro.

Se essa desgraça em si fosse pouca, Milei ainda se diz contra o aborto em qualquer hipótese (mesmo em casos de estupro) e a favor – veja você – do livre comércio de órgãos humanos. Toda essa reunião de estultices encontra-se embrulhada em um sujeito que, segundo uma biografia não autorizada, toma decisões com base em cartas de tarô e se vale de parapsicólogos para ter contato com seu cão falecido, do qual recebe conselhos.

À primeira vista pode parecer loucura, mas, como diria Polônio, ainda assim há método nela. Milei nada mais faz do que repetir o receituário eleitoral que produziu fama e sucesso para Donald Trump e Jair Bolsonaro. Visto como louco e desacreditado pela maioria da população, cujos Ticos conversam com os respectivos Tecos, Milei fala asneira e cretinices justamente com o propósito de “causar”. E, quanto mais ele “causa”, mais ele aparece. E, quanto mais ele aparece, mais ele se torna estuário de todo tipo de sentimentos ruins que costumam habitar recantos incônditos da alma humana.

Em um cenário “normal”, candidatos assim não reúnem mais do que 10, 15% do eleitorado. Trata-se daquela parcela mais ressentida e autoritária, que enxerga em tipos dessa natureza um espelho que liberta toda sorte de preconceitos que eles, contra a sua própria natureza, são obrigados a esconder no dia-a-dia. Mas, como infelizmente se vê, esse não é um cenário “normal”, assim como não eram os Estados Unidos de 2016 ou o Brasil de 2018.

O que cenários limítrofes costumam produzir é uma espécie de cegueira coletiva que traz para esse nicho restrito do eleitorado, que se situa no extremo do espectro político, aquela maioria meio amorfa que quer simplesmente seguir com a sua vida, sem que o governo interfira ou atrapalhe muito a sua vida. Quando se está em situação de desespero, por vezes é difícil ter de escolher entre uma comida estragada (a esquerda ou a direita argentina) e veneno puro (Javier Milei). Com raiva, o eleitor não consegue enxergar que, por mais que a primeira opção lhe vá dor de barriga, ele vai sobreviver. Na segunda, ao revés, a morte é certa.

É verdade que o argentino médio possui uma educação e uma cultura política muito mais refinada do que o brasileiro médio. Por isso mesmo, haverá quem defenda que a Argentina não cometerá os mesmos erros do seu irmão grande do Norte. Convém, contudo, colocar as barbas de molho. Quando esse cenário apareceu no Brasil, muita gente boa pensou o mesmo e deu no que deu. Neoperonistas e Macristas apostavam, até a semana passada, que o eleitor argentino não optaria pelo suicídio político.

E deu no que está dando.

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