Findo o Big Brother Brasil, os olhos da Nação agora voltam-se ao maior reality show da temporada: a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid. Instalada por determinação do Supremo Tribunal Federal, a CPI do Senado transformou-se rapidamente em um grande fenômeno midiático, a ponto de o país quase literalmente parar para assistir a alguns dos depoimentos lá prestados. Não era pra menos. Afinal, daqui até o final do mês, ultrapassaremos com folga a triste e inacreditável marca de 450 mil mortos pela pandemia.
Evidentemente, tudo que cerca uma CPI está impregnado de política. Seja do lado do governo, seja do lado da oposição, o que está em jogo não é propriamente uma “investigação” do tipo criminal, mas, sim, a busca de responsabilização pela tragédia que o país atravessa. Esse, aliás, talvez seja o único ponto de concordância entre todas as partes: o principal resultado da CPI, se vier, será no terreno eleitoral, não no terreno da Justiça.
Independentemente do resultado que a Comissão da Covid venha a produzir, o que interessa aqui para nós, neste momento, é outra coisa. Desde que os primeiros depoimentos começaram a ser prestados, uma espécie de excitação/torcida começou a tomar conta das redes insociáveis país afora:
“Quando é que alguém vai levar voz de prisão na CPI?”
Não que isso seja novidade. Muito pelo contrário. São vários os registros históricos de gente que foi depor numa CPI e saiu de lá algemada no camburão. Houve até caso de ex-presidente do Banco Central que saiu preso simplesmente por se negar a assinar o compromisso de dizer a verdade. Horas depois, o Supremo Tribunal Federal, concedeu-lhe um habeas corpus e deu-lhe razão (pois ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo).
O simples fato de esta ser a principal discussão demonstra bem o quão incompreendidas são as comissões parlamentares de inquérito. Embora estejam dotadas de poderes semelhantes às autoridades judiciárias, Suas Excelências – deputados ou senadores – não se transformam em delegado de polícia do interior que sai gritando “teje preso” pro primeiro sujeito que lhe atravessa o caminho. Na verdade, o “poder de prisão” conferido a um parlamentar não é em absolutamente nada diferente do poder geral concedido a qualquer cidadão de dar voz de prisão a alguém em flagrante delito (art. 301 do Código de Processo Penal).
A grande discussão, claro, gira em torno de pessoas que vão às CPIs para mentir na maior cara dura do mundo. Sem entrar no mérito de nenhum caso específico, todo mundo fica na expectativa de ver um notório mentiroso ser enquadrado ali no ato, ao vivo e em cores, para todo o país ver. Era como se o sentimento de Justiça da população fosse imediatamente aplacado pelo “teje preso” do Presidente da Comissão. Infelizmente, contudo, o buraco é mais embaixo.
Pra começo de conversa, o crime de falso testemunho possui pena máxima de quatro anos de reclusão (art. 342 do Código Penal). Isso significa que, ainda que “preso em flagrante”, o delinqüente será solto logo em seguida. Uma vez que não cabe prisão preventiva contra crimes com pena máxima de até quatro anos (art. 312, inc. I, do CP), ao juiz caberá somente conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança (art. 310, inc. III, do CP). Logo, um “teje preso” numa CPI é muito mais um espetáculo político-midiático do que verdadeiramente uma punição efetiva ao bandido.
Não fosse isso o bastante, o “estado de flagrância” de uma testemunha mentirosa é algo deveras discutível. A uma, porque o crime só se materializa ao final do depoimento (pois até a lavratura do termo o sujeito pode voltar atrás no que disse). E a duas porque, nos casos de processos cíveis ou criminais, o arrependimento e a confissão da mentira extinguem a punibilidade do agente, se forem praticados antes de o feito ser sentenciado. Logo, a “prisão em flagrante” de mentirosos no meio do depoimento numa CPI é algo que suscita no mínimo severas dúvidas quanto à sua legalidade.
“Quer dizer, então, que não se pode fazer nada contra os caras-de-pau que vão mentir ao Congresso, na frente de todo mundo?”
Para além de denunciar o sujeito e enviar o seu depoimento ao Ministério Público, de fato não há muito o que fazer. Mas, como congressistas que são, sempre que há um problema na legislação, a solução mais fácil é fazer justamente aquilo que os congressistas nasceram para fazer: mudar a lei.
Parece claro que o falso testemunho é um crime bastante grave e que seja no mínimo uma desfaçatez que depõe contra a credibilidade das instituições admitir-se que alguém vá a uma das casas do Congresso com o rosto revestido por óleo de peroba sem que nenhum mal maior se abata sobre ele. De lege ferenda, pode-se pensar em alguns dispositivos legais que tornassem no mínimo mais perigoso para os embusteiros o exercício indiscriminado da mentira.
Sem alterar a cabeça do art. 342 do Código Penal, poder-se-ia imaginar um parágrafo específico estabelecendo uma causa de aumento severo de pena (algo como “aumentar-se a pena da metade até o dobro”), caso a mentira tenha lugar em um depoimento ao Congresso, independentemente de ser uma CPI ou não.
Para além disso, seria possível ainda pensar-se em estabelecer que seria contado um crime para cada mentira que o sujeito dissesse no seu depoimento, como ocorre nos casos de concurso material de crimes. Nessa hipótese, os delitos pelas mentiras se somariam, de modo que o sujeito pudesse, por exemplo, tomar uma cana de 20 anos caso contasse cinco mentiras ao longo do seu testemunho.
Por fim, mas não menos importante, conviria também estabelecer uma norma de competência segundo a qual, considerando que o delito foi cometido dentro do recinto do Congresso, sua apuração caberia à Polícia Legislativa. Assim, afastando-se eventuais intervenções da Polícia Federal ou mesmo da Polícia Civil, o Congresso – através da sua polícia – resguardaria a primazia da investigação do crime, como forma de reafirmação da sua autoridade.
Com essas mudanças, quem sabe, o triste espetáculo de ver gente maior de idade e vacinada mentindo ao vivo aos parlamentares eleitos pelo povo deixe de ser uma realidade para nós.
Voz de prisão num palco político obviamente seria mais um rasgo na tão surrada Constituição. Basta uma uma maioria parlamentar para julgar, condenar e prender num momento apenas alguém que sequer teria direito ao mínimo do contraditório. Mas, como os tempos são outros, em que os valores se inverteram e criminosos recorrentes presidem e relatam uma CPI, às vésperas de um pleito presidencial, de forma cínica e eleitoreira, sem a menor vontade de investigar o caos que foi a condução da mitigação da peste chinesa por TODOS os agentes públicos nas três esferas de poder e dos poderes, CPI formada, em sua maioria, com parlamentares sob investigação ou com inquéritos formais em andamento, tudo se encaixa no absurdo “novo normal”. O povo brasileiro é testado em sua ignorância, paciência e resiliência mais uma vez.