Era a crônica da demissão anunciada.
Depois de largar 22 anos de magistratura e uma carreira de sucesso, na qual se tornou um símbolo de combate à corrupção, Sérgio Moro pediu demissão do cargo de Ministro da Justiça. Tendo engolido uma quantidade colossal de sapos nesse quase um ano e meio de governo, Moro enfim parece ter traçado uma linha divisória do tipo “daqui eu não passo”, pedindo o boné depois de uma tentativa explícita de interferência do Presidente da República na Polícia Federal. E a perguntando que todo mundo deve estar se fazendo é: “E agora?”
Para Moro, os caminhos se estreitaram bastante. Não bastasse ter renunciado à vitaliciedade, à inamovibilidade e a toda uma série de benefícios concedidos aos juízes, o fato de Moro ter caído atirando contra Bolsonaro atraiu a ira e a fúria de grande parte dos apoiadores do Presidente, que vêem qualquer um que abandone o barco – ainda mais nas circunstâncias em que Moro o fez – como verdadeiro traidor da causa. Moro, que já era odiado à esquerda por conta do seu trabalho na Operação Lava-Jato, agora é odiado também à direita, por ter se tornado estopim da mais grave crise política que Jair Bolsonaro enfrentou até agora.
Nesse contexto, restam a Moro basicamente duas opções: a primeira, abandonar de vez a vida pública e tentar a sorte na iniciativa privada, como advogado/consultor em áreas de compliance, por exemplo; a segunda, abraçar em definitivo a carreira política, deixando para trás a aura de juiz imparcial que continuava a ostentar com orgulho, a despeito das inconfidências trocadas com procuradores através do Telegram, no episódio que ficou conhecido como “Vaza-Jato”. Seja como for, o ex-ministro dificilmente terá vida fácil, ao contrário do que tenta vender boa parte da grande imprensa.
No lado do governo, o eixo de sustentação política muda completamente. Se antes Bolsonaro podia contar com o “Selo Sérgio Moro de combate à corrupção” para chamar as ruas para pressionar o Congresso, o Supremo ou a programação dominical das redes de TV, agora terá que fazê-lo alicerçando-se unicamente no chamado núcleo duro do bolsonarismo. Afinal, aquela parcela da população que ainda batia palmas para os arroubos autoritários de Bolsonaro contra o “sistema corrupto” dificilmente se sentirá estimulada a seguir fazendo-o quando o principal símbolo de combate à corrupção do governo de lá saiu batendo a porta, tirando o pó dos sapatos.
Exatamente em razão disso, Bolsonaro foi buscar no Centrão – sempre ele – a sustentação política que as ruas, já pouco entusiasmadas, dificilmente lhe dariam. E aí vale tudo: tirar selfie com Arthur Lira (denunciado no STF), chamar pra conversar o notório Valdemar da Costa Neto (condenado por corrupção) e até mesmo ressuscitar Roberto Jefferson (ícone do escândalo do Mensalão).
Evidentemente, será difícil para o Presidente sustentar um discurso pela “ética na política” enquanto mercadeja cargos de segundo escalão com o que há de mais rasteiro no espectro político nacional. Engana-se, porém, quem acha que isso renderá rejeição adicional nas pesquisas a Bolsonaro. Como ele mesmo já deve ter percebido, aqueles 20% do eleitorado que ainda estão com ele constituem a nata do bolsonarismo. Trata-se de uma gente cuja fidelidade ao “Mito” é tão canina que nenhum escândalo será capaz de abalar-lhe a imagem, por pior que seja o pecado revelado.
Parada decidida, então?
Não exatamente.
Embora seja certo que Bolsonaro ainda dispõe da devoção cega de pelo menos 1/5 do eleitorado, há ainda o “fator covid” a considerar. A “gripezinha” do Presidente, que até outro dia estava “indo embora”, já matou mais de cinco mil brasileiros e infectou outros 70 mil. São números que rivalizam com os da China, país cuja população é quase seis vezes maior que a nossa. E o que é pior: enquanto os chineses já aplacaram a epidemia e começam paulatinamente a retornar à normalidade, nós ainda nem sequer alcançamos o pico da doença. Sinal, portanto, de que o que já está ruim ainda pode piorar. E muito.
Fora isso, há o reflexo direto da pandemia no setor econômico. Com a indústria parada, comércio e serviços fechados, o baque na economia está contratado. A única dúvida é o tamanho do buraco que virá. Todavia, como o governo insiste em negar a gravidade da situação, é cada vez mais provável que a paralisação se arraste por muito mais tempo do que ocorreria se tivéssemos adotado uma quarentena estrita desde o começo. Nesse sentido, a Covid-19 pode derrubar a popularidade do Presidente justamente atacando a parte mais sensível do ser humano: o bolso.
Se a crise econômico-sanitária continuar a produzir estragos até o segundo semestre, por exemplo, vai ser difícil segurar a onda de insatisfação popular que se lhe deve seguir. A depender do tamanho do estrago, não vai ter devoção que resolva. Quando a despensa seca e a fome aperta, ninguém quer saber se os políticos são corruptos ou se o Supremo invade prerrogativas do Presidente. A única pergunta é: “Quem é que vai resolver o meu problema?”
Nesse sentido, o inquérito recém-aberto no STF pode servir como válvula de escape, tanto para um lado como para o outro. Se a crise arrefecer e a situação econômico-sanitária melhorar, é provável que o tiro saia pela culatra e que Sérgio Moro termine acusado por denunciação caluniosa. Mas, se o pior cenário se confirmar, ele pode muito bem servir de atalho ao tortuoso caminho do impeachment e permitir uma deposição relativamente rápida e límpida do atual inquilino do Planalto. Afinal, em tempos de crise, todo mundo quer uma cabeça para entregar à turba.
E, desde sempre, no panorama político brasileiro, nenhum escalpo é mais reluzente do que o do Presidente da República.