Ensinando solidariedade

Brasileiro rico, em geral, tem horror a pobre. Acha que nasceu numa casta privilegiada destinada a salvar o mundo (entendendo-se por “mundo” o espaço que vai do portão da casa até a piscina) e que pobre, na maioria das vezes, só atrapalha. Reclama, não trabalha e só serve pra pagar imposto. Solidariedade, para esse tipo de gente, é organizar boca-livre com ator global, leiloar entre os comensais alguma obra de arte sem sentido e propagar a “generosidade” nas colunas ou nas redes sociais. Isso no andar de cima.

No andar de baixo, a coisa é bem outra. Nua, crua, doída, mesmo. Solidariedade é oferecer um prato de comida a quem não te pode dar nada em troca. Solidariedade é oferecer a cama pra dormir a um parente distante que precisa se operar na capital e ir dormir na rede, mesmo tendo problema nas costas. Solidariedade é, enfim, um monte de coisas concretas que jamais passarão na TV. Dona Lurdes sabia bem disso. Mas sua filha não.

Nascida pobre no interior de algum estado nordestino, Maria das Graças – ou “Graça”, para os íntimos – crescera lavrando a roça que sua mãe mantinha no fundo da casa de taipa. Como nem sempre São Pedro ajudava com a chuva, às vezes era necessário andar seis quilômetros até o poço mais próximo, só pra trazer um pouco de água para beber e cozinhar. Banho, nessas condições, era luxo dispensável.

Dona Lurdes, no entanto, não se deixava abater pelo miserê. Consciente de que ser solidário é dar o que tem, não o que sobra, Lurdinha nunca se negara a ajudar alguém que achasse que estava precisando. Mesmo morando numa casa com marido e três filhas, a ordem era repartir o que havia com o próximo. Fazia parte da sua índole e, em todo caso, a benfeitoria sempre poderia render dividendos caso existisse alguma Providência Divina a olhar por nós.

Numa dessas, bateu-lhe à porta um vizinho. Sem chuva, a safra de feijão quebrara. Não restava nada além de arroz na panela. “Você tem alguma coisa pra me dar pra eu comer, Lurdinha?”, implorou o vizinho. “Claro, Fulano. Tome aqui uma melancia”, respondeu Dona Lurdes, estendendo a mão. Graça não se conformou.

“Como é que você faz um negócio desse, mãe? A gente aqui na maior miséria, passando necessidade, e a senhora fica distribuindo aí comida pros outros?”, interpelou a filha.

“Ah, cê tá achando ruim, Graça? Tem problema não”, respondeu calmamente Dona Lurdes. “Mariazinha!” – gritou a mãe enquanto chamava a outra filha – “Traz pra cá essa outra melancia que tá aí no fundo”.

Prestativa, a irmã caçula subitamente chegou com a melancia.

“Pronto, Graça. Cê tá achando ruim que eu dei aquele melancia? Pois vai agora comer essa melancia todinha“, disse Dona Lurdes, com ênfase no “todinha“. “E se deixar algum pedacinho de fora, vai apanhar e é muito, viu?”.

Contrariada, Graça não quis pagar pra ver. Comeu a contragosto a melancia que a mãe lhe colocara por sobre a mesa. Passou três meses sem querer ver uma pela frente.

Algum tempo depois, outro vizinho chegou. A mesma conversa de sempre: falta de chuva, quebra de safra, fome na mesa. Dona Lurdes resolveu, então, oferecer-lhe um dos carneiros para assar. Antes, porém, perguntou para dentro de casa, mirando os olhos em Graça:

“Vou dar um carneiro para Fulano. Alguém tem algum problema com isso?”

Do lado de dentro da casa só se ouviu silêncio.

E Graça descobriu que, mesmo nas dificuldades, é possível aprender a ser solidária.

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