Via de regra, os juízes dividem-se em duas classes. Na primeira, os juízes mais novos, recém-formados, cheios de razão e de confiança, assumem a toga como quem veste a capa do Super-Homem. Chegam chegando nas suas primeiras comarcas, distribuindo despachos e mandando soltar e prender. Na segunda, juízes mais velhos, assumem anos depois de terminarem a faculdade, já tendo levado muita porrada na cabeça. Com as costas marcadas pelos anos que a vida lhes confiou, chegam de mansinho, sentido o ambiente, antes de sair distribuindo esporro por aí.
Certa feita, um juiz da segunda categoria foi nomeado para uma cidade do interior do Ceará. Conhecida pela violência, a cidade tornara-se um centro exportador de pistoleiros. Já eram tantas as mortes que os moradores tinham parado de fazer contas. Os óbitos eram comentados com a naturalidade do resultado do jogo de final de semana:
“Lembra do Fulano?”, pergunta uma moradora na calçada para o sujeito que traz o garrafão de água.
“Lembro, sim. Que é que tem?”, devolve o entregador.
“Pois é. Morreu ontem, depois de cruzar com o Celestino”.
Sabendo disso, o juiz, safo que era, tratou logo de se misturar com o povo. Na primeira semana na comarca, tirou a sexta-feira para ir ao bar mais conhecido da região. Ponto de encontro da comunidade, o estabelecimento reunia a nata da pistolagem. Pediu uma aguardente local, servida em um daqueles copos de vidro que carregam desde cerveja até açúcar, tal é a sua versatilidade. Na outra ponta, empunhando uma “papo-amarelo”, um conhecido pistoleiro esfregava com um pano a espingarda, como se estivesse a prepará-la para a próxima ação. O juiz tenta se enturmar:
“Você que é o Fulano?”, perguntou o magistrado, já sabendo de quem se tratava.
“Sou eu, sim senhor”, respondeu o pistoleiro, também ciente de que falava com o representante da lei na cidade.
“Como é que é a vida por aqui?”, indaga o juiz.
“É tranquila”, disse o pistoleiro.
“Tranquila?”, perguntou intrigado o magistrado. “Eu soube que aqui era lugar de gente muito valente”.
“Aqui não tem gente valente não, dôtô”, explicou o matador, enquanto continuava esfregando a “papo-amarelo”.
“Como não?!?”, insistiu o juiz. “Todo mundo sabe que aqui só tem cabra valente”.
“Tem não, dôtô”, replicou calmamente o pistoleiro. “Quando chega um cabra valente aqui, a gente passa logo”.
E o juiz voltou então à sua dose de aguardente.