O juiz e o delegado

No Velho Oeste americano, a autoridade maior numa cidade era o sheriff. Incorporado ao vernáculo como “xerife”, o responsável pelo respeito às regras era a própria personificação do Estado presente na frente do indivíduo. Claro que com o tempo as coisas foram mudando, e figuras como o promotor e o juiz foram sendo incorporadas ao imaginário popular naquilo que se poderia chamar de “cultura de respeito à lei”.

Mas, em alguns rincões do Nordeste, a coisa ainda parece muito com os filmes de bangue-bangue, e não seria exagero dizer que o Velho Oeste, mal comparando, ainda dá as caras por lá. Ao lado do prefeito, do padre e do juiz, o delegado compõe o “quarteto fantástico” das pequenas cidades do interior. São eles que representam Deus, o Estado e a Família para quem se acostumou a viver em lugares onde não há qualquer deles.

De todo modo, quando um novo integrante chega na cidade, é de bom tom que o terceto restante vá fazer-lhe as honras da casa. Sabe como é, apresentar a si, apresentar a cidade e, principalmente, demarcar território. Por meio de linguagem cortês e gestos nem tanto, vai-se a cada um dos outros componentes passar a seguinte mensagem: “Até aqui, manda você. Daí pra frente, mando eu. E estamos conversados”.

Normalmente, tudo transcorre sem maiores problemas. Incidentes só costumam acontecer quando o novo integrante da banda é do Judiciário. Acostumado a ser bajulado e paparicado na capital e por onde quer que passe, boa parte dos juízes dificilmente aceita estar em posição de igualdade em relação aos demais. Primus inter pares, ele exige ser tratado com deferência, como se ocupasse a posição de maior relevo nesse sistema.

Certa feita, um juiz recém-empossado desembarcou de pára-quedas numa cidade do interior do Ceará. Ao assenhorar-se do fórum da cidade, viu pela janela do gabinete uma Prado, picape de alto-luxo da marca Toyota. Perguntou então ao diretor de secretaria:

“De quem é essa Prado aí fora?”

“Do delegado, doutor. Ele veio se apresentar ao senhor”, respondeu o responsável pela secretaria.

“Mas ele tem uma Prado?”, indagou espantando o julgador.

“Não só uma Prado. Tem uma Hilux, uma fazenda com 2000 cabeças de gado e uma casa de dois andares no centro da cidade. Ah, e tem também um jet ski, que ele usa no açude da cidade”, disse o diretor, enumerando o vasto patrimônio do encarregado pela aplicação da lei.

“Pois bem. Mande ele entrar”, assentiu o juiz.

Conversa vai, conversa vem, os dois se apresentam e trocam meia dúzia de palavras sobre a cidade, o povo e o jogo de futebol do fim de semana. Passada a fase das amenidades, o juiz, ainda incrédulo, pergunta ao delegado sobre a extensão do seu patrimônio:

“Doutor, meu diretor disse que o senhor tem uma Prado, uma Hilux, uma fazenda com 2.000 cabeças de gado, uma casa de dois andares no centro da cidade e em jet ski pra passear no açude. É verdade?”

“É, sim, dôtô. Por quê?”, disse o delegado.

O juiz não se contém e vai na jugular do delegado:

“O senhor não acha que os seus sinais exteriores de riqueza estão muito evidentes, não?”

O delegado cortou-lhe na hora:

“Dôtô, o sinhô num tem nada a vê com as minhas herança!”

E nunca mais se voltou a tocar no assunto.

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