O calote argentino

Boa parte das pessoas que acompanha o noticiário deve ter visto ontem as notícias do fracasso das negociações entre o governo argentino e os chamados fundos abutres. Pela segunda vez em 12 anos, a Argentina está oficialmente em mora.

Não que a notícia fosse alguma novidade. A coisa já vinha se anunciando há pelo menos dois anos, quando saiu a primeira sentença judicial favorável aos fundos abutres. Há pouco mais de um mês, a coisa degringolou de vez, pois a justiça norte-americana impediu o pagamento aos detentores de títulos argentinos que tinham participado da renegociação de 2012 enquanto não fossem pagos os títulos nas mãos dos fundos abutres.

Contudo, erra quem pensa que a coisa toda gira em torno de uma decisão de um juiz nova-iorquino. O calote imposto agora à Argentina não nasceu agora, mas há exatos doze anos, quando o marido de Christina, Nestor Kirchner, enfiou goela abaixo do mercado o maior calote de dívida soberana de todos os tempos.

Naquela época, Nestor foi celebrado como grande estrategista e homem corajoso, por ter peitado o mercado. Os mais de US$ 100 bilhões que os hermanos deviam transformaram-se como mágica em pouco mais de US$ 20 bilhões. A redução do montante da dívida permitiu à Argentina ganhar algum fôlego e conseguir voltar a crescer, depois de uma queda vertiginosa do PIB na virada do milênio.

Ocorre, no entanto, que os problemas da Argentina não haviam se acabado com a renegociação da dívida. Eles haviam sido apenas adiados. Além do fato de que 7% dos credores não tinham engolido o desconto de mais de 70% do valor de face nos seus títulos, a reestruturação da dívida soberana só faria sentido se a Argentina tomasse, a partir de então, outro caminho de desenvolvimento.

Mas não foi isso que se passou. Como sempre acontece quando presidentes embarcam em ondas de popularidade, as deficiências macroeconômicas estruturais da Argentina foram empurradas com a barriga. Pior. Ao melhor estilo neoperonista, Nestor expulsou as poucas empresas que se dispunham a investir no país, com medidas populistas como tabelamento de preços. Quem não se lembra, por exemplo, do presidente argentino convocar rede nacional para responder às críticas das petrolíferas à sua política com um “Que se vayan todos!”?

Se isso não fosse bastante, a falta de acordo com aqueles que não tinham aceitado o calote travou o acesso da Argentina aos mercados internacionais. Resultado: o país não tinha qualquer outra receita de dólares senão as suas exportações agrícolas. Uma simples quebra de safra poderia colocar tudo a perder.

O grande problema por trás da decisão da justiça norte-americana reside numa coisa chamada “cláusula rufo”, acrônimo designativo da expressão rights upon future offers. Por essa cláusula, o governo argentino se obriga a pagar de maneira isonômica todos os seus credores. É dizer: se a Argentina aceitar pagar aos fundos abutres 100% do valor de face de seus títulos, terá de estender o benefício a todos mundo, inclusive aqueles que aceitaram receber os seus créditos com desconto de 70%. Subitamente, a dívida argentina saltaria para US$ 120 bilhões, quatro vezes mais do que o país dispõe em reservas.

Do ponto de vista prático, o calote não muda muita coisa. Quer dizer, o que muda na situação de um país que se encontra afundado até a cintura se a lama sobe até o pescoço? Pouca coisa. Haverá mais recessão, mais desemprego e o peso vai se desvalorizar um pouco mais.

O pior de tudo é saber que, diante de tudo isso, a única alternativa que Christina Kirchner enxerga à mesa é pisar fundo no populismo. Chamar de abutres os especuladores que adquiriram títulos argentinos na baixa pode ser uma boa alternativa para vender ao seu público interno, mas não resolve a moratória imposta ao país. Recorrer à ONU, à Corte de Haia ou à Mãe Meninhinha do Gantois pode render manchete, mas não reverterá a decisão da justiça dos Estados Unidos.

Ou a Argentina se dá conta de que o neoperonismo destroçou o país, ou continuaremos assistindo à derrocada da outrora maior potência da América Latina.

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