Alguma coisa de muito boa acontece no mundo, e pouca gente parece ter se dado conta disso. Desde o mês passado, dois acontecimentos extraordinários e aparentemente desconexos indicam que o globo passa por uma reordenação de poder que só encontra paralelo com o fim da II Guerra Mundial. Trata-se, aqui, do acordo que levou à destruição do arsenal químico da Síria e do retorno das negociações multilaterais sobre o controverso programa nuclear iraniano.
Há pouco mais de um ano, o cenário para ambas as situações era claramente outro. Destroçada por uma guerra civil, a Síria encarava a batalha do ditador Bashar Al-Assad para se manter no poder frente a uma fragmentada revolta interna. Mais ao leste, o Irã de Mahmoud Ahmadinejad encolhia-se como um escorpião ameaçado ante a imposição de sanções econômicas pela ONU. Nos dois casos, qualquer passo em falso poderia fazer desandar a maionese e levar a um conflito internacional de impacto regional ou, no caso do Irã, até mais do que isso.
Hoje, felizmente, o cenário é bem outro.
Mesmo tendo dado o pretexto para internacionalizar o conflito, ao usar armas químicas contra a população civil, Assad deu dois passos atrás e abriu mão do arsenal químico. Com seu recuo, impediu um ataque americano de conseqüências imprevisíveis. No Irã, Ahmadinejad é passado e Hassan Rohani conduz um promissor processo de distensão com o Ocidente. Embora o Oriente Médio sempre desafie prognósticos otimistas, hoje se dá de barato que não há possibilidade de um novo conflito na região nem mesmo a médio prazo.
O que mudou de lá pra cá?
A resposta aparentemente passa pelo declínio do Novo Império Romano. Ou, como é mais conhecido, os Estados Unidos.
Em outros tempos – e olha que nem faz tanto tempo assim -, os americanos detinham um poder tão absoluto e incontestável no panorama mundial que eles podiam fazer tudo o que quisessem. Nenhum país, nem muito menos a ONU, tinha capacidade para impedi-los de impor a sua vontade ao restante do globo. E assim, por exemplo, interveio-se na Guerra Civil da Bósnia, invadiu-se o Afeganistão e tomou-se de assalto o Iraque. Nestes casos todos, a grita e a pressão internacional foram tão grandes quanto agora. Mesmo assim, nada fez com que os Estados Unidos mudassem de idéia quanto à intervenção estrangeiras.
Agora, não. De repente, a pressão internacional opera o milagre de demover os americanos de um ataque certo à Síria. No caso do Irã, obviamente a postura conciliatória de Rohani pesou um bocado, mas, em outros tempos, os americanos reagiriam mais à moda de Israel – dizendo que ali estava um “lobo em pele de cordeiro”. Jamais passaria pela cabeça de alguém que um negociador americano dissesse aos jornalistas que as propostas iranianas “deveriam ser tomadas a sério”.
Ao contrário do que a maioria pode pensar, não se pode atribuir tal fenômeno à ascensão de potências estrangeiras como Rússia e China. Ou, pelo menos, não se pode atribui-lo exclusivamente a isso. Claro que o crescimento de chineses e russos ajudou. No entanto, nenhum deles está sequer próximo do nível de poderio econômico e militar que os americanos ostentam.
Na verdade, o fator preponderante a resultar no realinhamento do delicado equilíbrio de poder mundial foi a queda dos Estados Unidos. De um lado, a crise do subprime e a queda econômica dela decorrente. Do outro, o atoleiro passado na guerra do Iraque e o ainda não resolvido atoleiro na guerra do Afeganistão.
Sem a mesma capacidade de gastar dinheiro em guerras mundo afora e com o custo político dessas empreitadas cada vez mais alto, de repente a opção militar deixou de ser tão simples e atraente como o foi um dia. Se houve um tempo em que invadir outros países rendia dinheiro para a economia e votos nas urnas – Bush Jr. que o diga -, hoje o resultado certamente é outro. Que ninguém se iluda: Obama não atacou a Síria ou o Irã por alguma convicção pacifista íntima, mas porque sabia que politicamente seria um desastre para ele.
O peso menor dos Estados Unidos contribui para que o balanço de poder mundial encontre um ponto de equilíbrio no qual os interesses contrários não têm como ser impostos às outras partes pelo uso bruto da força. Nesse contexto, guerras unilaterais tornam-se cada vez menos prováveis. E a outrora desacreditada “comunidade internacional” passa a ter voz e vez no pesado jogo das relações internacionais.
Por pelo menos meio século, todos acreditavam que não seria possível viver em um planeta no qual um país não desempenhasse o papel de “Polícia do Mundo”. Agora, com a queda da Nova Roma, o mundo vai descobrindo as vantagens do multilateralismo global.
Já não era sem tempo.