Quis custodiet ipsos custodes?

A época era o século I antes de Cristo. Reinando sobre o mundo conhecido, os romanos espalhavam sua cultura e seus costumes a todos os povos que banhavam o Mediterrâneo. Em meio a tanta opulência, ostentação e corrupção, coube a um poeta denunciar por meio de versos a decrepitude daquela sociedade. Depois dos escritos de Juvenal, o termo Sátira jamais voltaria a ser empregado senão na sua forma pejorativa, isto é, o uso da ironia e do sarcasmo para censurar o comportamento humano.

É dele, por exemplo, o adágio segundo o qual todo homem deve orar para ter uma mente sã em um corpo são (mens sana in corpore sano). Também é dele o resumo mais bem acabado daquela época, segundo o qual a política romana dedicava unicamente a entreter a malta com pão e circo (panis et circenses). Mas uma das mais famosas máximas de Juvenal é o paradoxo da vigilância: Quis custodiet ispos custodes? Ou, mal traduzindo, quem vai fiscalizar os próprios fiscais?

Todo mundo sabe que consciência é o medo que sentimos de que alguém esteja observando. Para tornar efetiva a observância das regras estabelecidas, o sistema desenvolve mecanismos de fiscalização, pois, do contrário, a tendência natural do ser humano para fazer o que lhe der na telha colocaria em risco toda a estrutura social.

No entanto, como toda ação humana, também a de fiscalizar necessita de homens para ser aplicada. Daí o problema proposto por Juvenal: se a cadeia de fiscalização segue uma ordem hierárquia de acordo com a qual o nível hierárquico imediatamente superior fiscaliza o inferior, quem fiscalizará aqueles que se encontram no topo da hierarquia?

No Brasil, estamos tendo a oportunidade de observar ao vivo e em cores a aplicação prática desse problema.

As mazelas do Judiciário nacional não são de agora nem são novidade. Desde há muito juízes corruptos e lenientes faziam a má fama da maioria, que trabalha de sol a sol como burro de carga. Distribuição de benesses, desvirtuamento de benefícios e relações promíscuas entre os pares eram apenas a faceta mais visível do mal que a corrupção fazia ao sistema.

Para combater o problema, alguém teve uma solução genial: por que não criar um órgão nacional, a pairar acima de todos os tribunais, para fiscalizar os desmandos praticados sob o manto do compadrio?

Foi nesse contexto que surgiu o Conselho Nacional de Justiça.

Criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, o CNJ pretendia fazer uma “faxina” nos tribunais locais. Prometia-se a redenção da justiça brasileira, agilizando os processos judiciais e garantindo à população uma solução rápida e honesta dos litígios. Passados oito anos, o legado trazido pelo CNJ é, na mais condescendente das avaliações, discutível.

Reportagem do Estadão, produzida pelo jornalista Felipe Recondo – o mesmo que o Ministro Joaquim Barbosa mandou chafurdar no luxo – mostra que as coisas no CNJ não andam lá muito bem das pernas. Somente no ano passado, foi gasto R$ 1 milhão com mudança de juízes e servidores. R$ 900 mil foram gastos com auxílio-moradia para juízes e servidores requisitados. As diárias de viagem, por sua vez, pularam de R$ 2,3 milhões para R$ 5,2 milhões. Tudo isso numa corte em que os conselheiros recebem jeton pelo simples fato de comparecerem às sessões de julgamento.

Pra piorar, há pouco mais de duas semanas, o envio inadvertido de um email do conselheiro Tourinho Neto expôs manobras de bastidores que revelam hábitos no mínimo incondizentes para quem ocupa a condição de fiscal da justiça brasileira. Chega a ser patética a tentativa desesperada do conselheiro Jorge Hélio de explicar, numa sucessão infinita de “por acasos“, por que atendeu ao pedido de Tourinho Neto. Mais curioso ainda é admitir que Jorge Hélio deferira a liminar por engano para, justamente depois de a história vazar, revogar a própria decisão.

Fora isso, não nos esqueçamos dos casos em que o CNJ, atendendo ao clamor público, tomou decisões no mínimo controversas. Não custa lembrar que a juíza Clarice Maria de Andrade, que mandara prender uma menor no Pará, foi aposentada compulsoriamente pelo CNJ em decisão unânime. Pouco importava que a decisão estivesse fundamentada. Pouco importava que a magistrada tivesse determinado, na própria decisão, que a menor ficasse separada dos demais presos. O que importava era atender à sede de sangue da malta e sacrificar um bode para expiar os pecados do sistema prisional brasileiro. Dois anos depois, o STF anulou a decisão e deu razão a Clarice.

A essa altura do campeonato, é difícil imaginar uma reforma que retire o CNJ do cenário nacional. Qualquer iniciativa nesse sentido seria vista como “retrocesso” e “reação corporativa” da juizada. Espera-se, apenas, que a sociedade acabe por descobrir que, assim como os tribunais, também o Conselho Nacional de Justiça é composto por homens. Homens com idiossincrasias e susceptibilidades iguais ou até piores do que aqueles a quem pretendem fiscalizar.

Juvenal estava certo: quem vai fiscalizar os fiscais?

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