O novo papa

Não deu outra. Assim como foi antecipado aqui, todas as previsões dos “vaticanistas” e mesmo das bolsas de apostas londrinas sobre o conclave de 2013 revelaram-se furadas. Fora da lista de qualquer um dos “especialistas em sucessão papal”, Jorge Mario Bergoglio foi eleito papa no segundo dia, após cinco rodadas de votação.

Não só isso. Todas as expectativas acerca do “candidato ideal” dos cardeais para o conclave – pelo menos na intuição dos analistas – foram frustradas. Esperava-se um papa relativamente jovem, com no mínimo 60 e no máximo 70 anos. Bergoglio tem 76. Esperava-se um papa italiano (Scola) ou mais ligado à Cúria (Scherer ou Turkson). Bergoglio é argentino e, quando sondado para ocupar um cargo na burocracia vaticana, refugou-o, alegando que “morreria” se assumisse. Esperava-se, enfim, um papa com experiência administrativa, coisa que faltava a Bento XVI. Bergoglio nunca ocupou posição ou diocese com destaque suficiente para dar-lhe o epíteto de “administrador”.

Como toda eleição cercada de segredos, os conclaves são terreno fértil para o florescimento de lendas. A última delas é que, no conclave de 2005, Bergoglio teria chegado em segundo lugar. Teria perdido para Ratzinger depois de, em um gesto dramático, ter implorado em lágrimas que não votassem nele, pois não estava preparado para assumir o cargo.

Pode até ser que Carlo Maria Martini tenha enxergado no prelado argentino uma possibilidade de bater Ratzinger, dada a natural resistência ao seu nome. Mas falta explicar como um sujeito pede em lágrimas para não ocupar um cargo por incapacidade e, oito anos depois, mais velho e mais frágil, aceita-o com tanta naturalidade.

Por todas as razões do mundo (e mais algumas), a eleição de Bergoglio representa uma mudança de paradigmas sem precedente na história da Igreja Católica. Jamais houve um papa latino-americano. Jamais houve um papa do Terceiro Mundo. Jamais houve um papa jesuíta. De todas essas excepcionalidades decorrem diferentes tendências que vão muito além da escolha emblemática do nome “Francisco” para seu papado.

Já há algum tempo, a Europa deixara de ser o berço do cristianismo católico. No século XVIII, por exemplo, perto de 80% dos católicos do mundo estavam no Velho Continente. Hoje, eles não representam mais de 1/4 do total de fiéis da Igreja. Apesar da queda recente nas últimas décadas, a América Latina representa quase a metade desse contingente.

Além disso, a eleição de um papa do Terceiro Mundo reordena o foco da Igreja para as únicas regiões do mundo onde o catolicismo ainda cresce: a Ásia e, especialmente, a África. Deixando o velho eurocentrismo de lado, é possível que a eleição de um cardeal com vocação pastoral indiscutível como Bergoglio fomente a difusão da fé católica em países normalmente relegados a segundo plano no planejamento da Igreja. Com alguma sorte, será possível também estancar a sangria de fiéis numa região sempre tida como cidadela católica pela Santa Sé: a América Latina. Não custa lembrar que, há pouco mais de 50 anos, os católicos eram quase 90% da população do Brasil. Hoje, não chegam a 70%.

Outro fator que tem passado ao largo das análises desde a eleição de ontem é a origem eclesiástica do novo papa. Jorge Maria Bergoglio é da Companhia de Jesus, a famosa ordem fundada por Santo Ignácio de Loyola no século XVI. Muito mais do que a curiosidade de ser o primeiro papa jesuíta da história, a escolha de um membro da Companhia para chefe da Igreja pode dizer muito mais do que a escolha do nome Francisco.

Soldado de ofício, Ignácio de Loyola foi ferido na Batalha de Pamplona, na qual Francisco I da França e Carlos I da Espanha disputavam o trono do Sacro Império Romano-Germânico. Convalescendo, sem ter mais o que fazer, Ignácio de Loyola começou a ler A Vida de Cristo. Decidiu, então, dedicar sua vida a Deus. E fundou a Companhia de Jesus.

Mas isso não foi tudo. Com seu passado militar, Ignácio de Loyola deu ares quase bélicos a sua ordem. Funcionando como ponta-de-lança do movimento de Contra-reforma, os jesuítas seriam os responsáveis por difundir a fé católica nos recém-descobertos continentes, um ambiente inóspito e desconhecido e, assim, garantir a hegemonia da Igreja no Novo Mundo. “Tudo para a maior glória de Deus”, como diz o lema de Santo Inácio.

De certo modo, é a mesma coisa que se tenta com a eleição de Jorge Mario Bergoglio. Em um ambiente de conflagração, fustigado por crises por todos os lados, o Vaticano reage elegendo um “soldado” para enfrentar a dura tarefa de evangelização em territórios nos quais a fé católica jamais ocupou posição de destaque.

Bergoglio destaca-se pela humildade, pelo carisma e pelos confrontos com os poderes seculares. Engana-se, contudo, quem vê nele um papa “progressista”. Primeiro, porque, como dizem os americanos, there is no such a thing as a progressist pope. A Igreja Católica é, por definição, conservadora. Ponto. Segundo, porque a maior parte das coisas que constituem a “agenda progressista” – casamento homossexual, aborto, liberdade sexual, etc. – vai de encontro a dogmas de fé, dogmas que não mudarão qualquer que seja o papa.

Além disso, é precipitado apostar nele com um candidato para “reformar” ou “enfrentar” a Cúria Romana. Sem background de administrador, Jorge Maria Bergoglio tem tudo para ser um novo “João Paulo II”, isto é, viajar pelo mundo para difundir a fé católica e deixar a administração burocrática da Igreja para os cardeais com assento na Cúria. O verdadeiro tom de seu pontificado só será descoberto quando ele nomear seu Secretário de Estado, o equivalente, est modus in rebus, ao Primeiro-ministro do Vaticano.

A depender de quem venha a ocupar o cargo, será possível saber qual das correntes efetivamente venceu o conclave: os conservadores que estão na Cúria e que querem manter o status quo; ou os conservadores reformistas, que acham que os escândalos já atingiram um nível de fetidão insuportável. Será possível inclusive saber se houve algum tipo de acordo entre facções no conclave, algo que venha a explicar um resultado tão surpreendente numa eleição relativamente rápida.

Quanto à eleição, a propósito, não se afaste também a possibilidade de que Bergoglio tenha sido eleito como candidato de compromisso. Diante do impasse entre as diversas correntes, é possível que o tenham escolhido como forma de adiar o embate verdadeiro. Isso explicaria a elevada idade do novo papa, principalmente quando se tem em consideração que o último renunciou por conta da incapacidade física para enfrentar os problemas da Igreja.

Seja como for, a eleição de Bergoglio é auspiciosa. Depois de muito tempo, uma figura de uma humildade e de uma simplicidade exemplares alcança o cargo mais alto da Igreja Católica. Quando, em 1958, os cardeais elegeram Angelo Giuseppe Roncalli para  papa, ninguém apostava que ele viria a fazer outra coisa senão esquentar a cadeira que viria a ser ocupada por Giovanni Batista Montini. Em três anos, João XXIII convocou o Concílio Vaticano II e mudou pra sempre a cara da Igreja Católica.

Tomara que dentro desse Francisco esteja um João adormecido…

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5 respostas para O novo papa

  1. Eduardo disse:

    Parabéns! Excelente texto. Fiquei com uma pequena dúvida: o novo Papa, por ser latino-americano, vai enfrentar a perdas de fiéis na região e na própria Europa, ou vai priorizar a evangelização na África e na Ásia?

    • arthurmaximus disse:

      Obrigado, Jack. Acho que ele vai enfrentar mais de frente a perda na América Latina, onde as chances de êxito são maiores. Mas acredito que ele vai “terceirizar” a evangelização por estas bandas, nomeando uma quantidade maior de cardeais para essa parte do globo. Quanto à Ásia e à África, além disso, vai produzir uma evangelização mais pessoal, mais presente, através de viagens internacionais para os países do extremo oriente. A conferir. Abraços.

  2. Mourão disse:

    O Papa atual não era um dos atualmente cotados, mas há outras evidências que indicam haver sido ealçmente forte candidato em 2005, embora deixando o choro para lá, poia não se sabe se real ou não. Agora, considero altamente improvável que em apenas cinco votações os cardeais tenham optado por um nome que não haja chegado ao conclave com muita força entre os que fato decidiram. Np mais, para desaprovação do nosso alemão, me vejo no saudável dever de lhe cumprimentar pelo excelente (como assim afirmou o grande Jack) texto. Você merece realmente ser lido, meu nobre Senador.

    • arthurmaximus disse:

      Na verdade, Comandante, é possível que nós nunca saibamos o que realmente aconteceu para levar Jorge Mario Bergoglio a se tornar Francisco. Pelas notícias que saíram hoje, parece que ele apareceu em terceiro já na primeira votação. Mas vai saber o que levou o Sacro Colégio Cardinalício a despejar maciçamente os votos no prelado argentino. Muito obrigado pelos elogios. Um abraço.

  3. Pingback: O primeiro consistório de Francisco | Dando a cara a tapa

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