A renúncia de Bento XVI

Nos meios dos festejos pagãos do Carnaval, o mundo inteiro – católico ou não – começou a semana atordoado com a notícia da renúncia de Bento XVI ao papado. Subitamente, vaticanistas, religiosos, clérigos, ateus e curiosos passaram a divagar sobre os motivos que leveram Joseph Ratzinger a renunciar ao Trono de São Pedro e abdicar da liderença de 1,2 bilhão de fiéis espalhados pelo globo. E, como sói acontecer nesses casos, começaram a aparecer teorias conspiratórias e baboseiras de todo gênero para tentar explicar o ato inesperado. Uma coisa, no entanto, é certa: a renúncia de Bento XVI traz conseqüências muito profundas para a Igreja e para a fé católicas.

Pra começo de conversa, é besteira dizer que Ratzinger chegou ao papado “sem querer”, como se o colégio cardinalício o tivesse constrangido a aceitar o encargo. Ratzinger chegou a Bispo de Roma por ser a eminência parda de um dos pontificados mais longevos de todos os tempos. Conservador como só ele, João Paulo II nomeou praticamente todos os integrantes do Sacro Colégio de Cardeais que elegeria seu sucessor. Mais que isso. Tendo Ratzinger como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – a antiga e temida Inquisição – perseguiu e expurgou quase todos os purpurados “progressistas”. Exatamente por isso, não foi difícil para Ratzinger tratorar Carlo Maria Martini, arcebispo da poderosa arquidiocese de Milão, no conclave de 2005. Foram necessárias apenas 4 votações em 2 dias para conseguir a maioria de 2/3 e eleger-se Bento XVI. Ratzinger chegou lá porque quis. A questão é saber por que não quer mais.

Do ponto de vista puramente teológico, a renúncia não faz sentido. O sujeito alçado à condição de Vigário de Cristo na Terra abre mão de sua própria vida para dedicar-se à disseminação e à guarda da fé cristã. Em outras palavras, o sujeito que busca o posto mais alto da hierarquia eclesiástica vai em busca de uma cruz quase tão pesada como a de Jesus Cristo. Tal como ele, deve abraçá-la e carregá-la enquanto tiver forças para tal. Alegar razões de saúde para abandonar o cargo parece estranho, sobretudo por transformar seu antecessor, Karol Wojtyla, em uma espécie de masoquista, por suportar, curvado, até o fim de seus dias, o pesado ofício que caíra sobre seus ombros.

Do ponto de vista da influência da Igreja no mundo, a renúncia é um golpe sem precedentes. Não simplesmente porque a última data de seis séculos atrás, mas porque é a primeira a dar-se em tempos modernos, em que o Papa deixou de ser uma figura mística, quase inatingível, para ser um espécie de pop star andarilho. Os ocupantes do Trono de Pedro já detiveram muito mais poder real no mundo, mas nunca estiveram tão presentes no cotidiano das pessoas quanto nos últimos 30 anos. Para aqueles que olham na TV ou nas revistas a figura papal em busca de alguma inspiração, ver que os Santos Padres podem de repente se ver às voltas com problemas bem palpáveis certamente tenderão a descrer naquela aura mágica que os envolvia. Um conhecedor profundo da doutrina teória do cristianismo como Ratzinger não deve ter imaginado que sua renúncia contribuiria de alguma forma para a renovação da fé cristã.

Do ponto de vista da política vaticana, a renúncia é quase um ato supremo de contrição. Mais do que uma confissão de culpa, Ratzinger pode ter sucumbido a uma engrenagem que azeitou e na qual gostosamente sentou por muito tempo: a máquina de moer papas conhecida como “Cúria Romana”.

João Paulo II, por exemplo, comeu o pão que Asmodeu amassou na mão dos barretes com assento na burocracia do Vaticano. Polonês, Wojtyla era chamado maldosamente de straniero pelos integrantes da Cúria. Criticavam-no principalmente por “esquecer” que o primeiro ofício de um Papa é ser Bispo de Roma, ou seja, “cuidar da Cúria”. Talvez por isso mesmo preferisse passar mais tempo viajando pelo mundo do que dentro do Vaticano.

O monstro já dera as suas caras várias vezes no pontificado de Bento XVI. As mais recentes foram na forma de vazamentos de documentos sigilosos do Vaticano, especialmente aqueles relacionados à dubiedade que Ratzinger dispensou aos constragedores casos de pedofilia de clérigos. Numa reação bem mundana, é possível que o papa alemão tenha simplesmente ficado “de saco cheio” de tanta futrica e disputas internas pelo poder e resolver pegar o caminho da roça.

Do ponto de vista prático, a renúncia traz problemas de toda ordem. Se é difícil saber o que fazer com ex-presidentes nos estados laicos, que dirá saber o que fazer com ex-ocupantes do Trono de Pedro? “Ex-papa” é uma figura que não existe. “Arcebispo emérito de Roma” pode ser uma solução, mas vai ficar difícil convencer a quem já ocupou o posto de Santo Padre a prestar reverência ao novo papa. Pela primeira vez em seiscentos anos, um conclave terá lugar com o papa ainda vivo. Presidente do Colégio Cardinalício, Bento XVI não participará da eleição de seu sucessor. E, a essa altura, é difícil até saber se terá como influenciar de algum modo a escolha. Quem disser que sabe que tipo de pontificado sairá do próximo conclave está mentindo ou chutando no escuro.

A única coisa certa é a seguinte: se o conclave for rápido e eleger um cardeal italiano de prestígio, como Angelo Sodano, será um sinal de trégua entre as diversas correntes da Cúria. Se o conclave perdurar por mais de 3 dias, é sinal de que a guerra surda entre as diversas correntes do Vaticano conduziu a um impasse. Nessas horas, pode sair qualquer coisa. Foi em um conclave desses que os cardeais elegeram o primeiro papa não italiano em cinco séculos.

Seu nome? Karol Wojtlya.

Esta entrada foi publicada em Religião e marcada com a tag , , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.

2 Responses to A renúncia de Bento XVI

  1. Avatar de Kellyne Kellyne disse:

    Embora eu não seja católica, não posso negar que a notícia da renúncia de Bento XVI despertou em mim certa curiosidade, haja vista a novidade e raridade da situação. Sua análise foi das mais interessante que li, Arthur! Vi também uma outra opinião de que o Papa, sentindo-se pressionado a realizar mudanças na igreja, e não disposto a abandonar seus dogmas, resolveu retirar-se do cargo para deixar o caminho aberto a seu sucessor para realizar as mudanças necessárias. De qualquer forma, excelente texto! Bjos

    • Avatar de arthurmaximus arthurmaximus disse:

      Você, como sempre, muito genti, minha cara. É possível que nunca saibamos as questões íntimas ou políticas que levaram à renúncia de Bento XVI. O melhor panorama será após o conclave. A depender do Papa que sair dele, será possível saber se Ratzinger renunciou para, por exemplo, eleger o seu sucessor. Será possível também saber o tamanho das fraturas existentes na Cúria. Mas, hoje, quem disser que sabe o que o futuro trará à Santa Sé, ou está mentindo, ou tem o anel de cardeal no dedo. Beijos.

Deixar mensagem para arthurmaximus Cancelar resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.