A refundação da Arena

Existe uma corrente filosófica chamada cientificismo. Em poucas palavras, o cientificismo aceita como realidade apenas aquilo que pode ser verificável empiricamente através da experimentação científica. Do contrário, trata-se de mito, religião ou superstição. Um dos corolários do cientificismo é a noção segundo a qual não haveria retrocessos, pois o conhecimento futuro será sempre maior do que o passado. Assim como a ciência, a humanidade estaria fadada inexoravelmente à evolução.

Nada mais errado.

Uma das evidências mais recentes do quão equivocada é essa proposição foi a notícia de que uma estudante gaúcha de 23 anos pretende refundar a Aliança Renovadora Nacional, a Arena.

Outrora conhecida como “o maior partido do Ocidente”, a Arena era o partido de sustentação da ditadura militar. Após o golpe de 1964, os gorilas tentaram manter as aparências. Castello Branco, por exemplo, foi eleito presidente pelo mesmo Congresso eleito sob o governo João Goulart.

Mas, como toda mentira tem perna curta, também a manutenção da “legalidade” pós-golpe não duraria muito. Cedendo à ala mais radical do Exército, insuflada por um Costa e Silva sedento de desordem, Castello Branco aquiesceu com a recaída ditatorial do Ato Institucional no. 2.

Com o AI-2, os militares extinguiram os partidos então existentes e instituíram um bipartidarismo pretensamente baseado no sistema americano. De um lado, a Arena, conservadora, de apoio à ditadura. Do outro, o Movimento Democrático Brasileiro, ou MDB, de oposição e contestação ao regime.

Desde sempre, a existência dos dois partidos era uma farsa. Sua criação deveu-se unicamente à pretensão de dar um verniz de legalidade ao movimento golpista de 64. Para não vestir a carapuça de estado de exceção, mantinham-se as eleições parlamentares e o congresso aberto, mas, assim como um garrote, ele só iria para onde o Executivo mandasse. Se enchesse muito o saco, havia ainda a possibilidade de simplesmente fechá-lo e legislar extraordinariamente no lugar dele.

Arena e ditadura estabeleceram uma relação simbiótica segundo a qual, quando uma estava bem, a outra ficava melhor. Quando uma ia mal, a outra ficava pior. Enquanto o Milagre Econômico desviou a atenção dos brasileiros dos desmandos provocados pela miopia das casernas, tudo bem. A Arena prosperou e chegou a ter uma maioria tão esmagadora no Congresso que o MDB não reunia sequer o terço necessário para pedir a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito. Quando o Milagre virou vinagre, a Arena começou a minguar como um pneu furado.

Em 1974, levou uma surra memorável nas urnas. Em 1978, salvou-se graças ao Pacote de Abril de 1977. Pressentindo o desastre nas eleições de 1982, e já sem poder recorrer ao AI-5, o último dos gorilas-presidentes acabou com o bipartidarismo em 1980, e o que restou da Arena bandeou-se para o já exinto PDS. Desde então, a direita brasileira ficou restrita a coisas como o PFL, que representava somente a mais fina flor do atraso reacionário brasileiro.

Quem observa a cena política brasileira, pode até entender as razões que levam uma pessoa a defender a criação de um partido conservador. Não há, hoje, no espectro político, nada que se assemelhe a isso. À falta de uma legítima direita liberal, o brasileiro tem de escolher entre esquerdistas convertidos e conservadores envergonhados, o que só empobrece o debate político.

A verdadeira direita liberal está estabelecida desde sempre. Nunca foi de esquerda e não gosta de convertidos. Defende a aplicação da lei a qualquer um e desconfia do apadrinhamento companheiro. Professa algum tipo de fé cristã e desconfia dos ecumênicos de ocasião. Ganha dinheiro trabalhando e não acredita no cassino financeiro. É nacionalista e tem algum tipo de compromisso social. Talvez nem isso tenha, mas não diz a desempregado que ele não arruma emprego porque é idiota. Tem saudade de andar na rua, como fazia antigamente.

Que o Brasil precisa de um partido que defenda abertamente essas bandeiras, não há dúvida. Mas não será recriando a Arena que chegaremos lá.

É o que se espera que a estudante gaúcha entenda, um dia.

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