A tolerância com a intolerância

A seção internacional do noticiário foi manchada com sangue nesta semana. Após a divulgação de um filme norte-americano no qual o profeta Maomé supostamente foi ridicularizado, pipocaram manifestações no Oriente Médio contra os americanos. Além de protestos no Egito e no Irã, um atentado à embaixada americana na Líbia matou quatro pessoas, inclusive o embaixador americano, Christopher Stevens. Ironicamente, o autor do filme nem americano é, mas um egípcio cristão, Morris Sadek.

A temática não é nova. Desde quando Salman Rushdie escreveu Versos Satânicos e foi “sentenciado à morte” pelo aiatolá Khomeini, a intolerância islâmica dá as cartas no cenário religioso internacional. Numa época mais recente, um caricaturista dinamarquês provocou uma reação tão barulhenta quanto, mas menos violenta, quando resolveu fazer charges que satirizavam Maomé. Em todos os casos, no entanto, há uma mesma mensagem: quem mexer com Maomé estará arriscando a própria vida.

A intolerância religiosa, registre-se, não é privilégio da história muçulmana. Que o digam as cruzadas, as conversões forçadas e as torturas praticadas contra livres pensadores, quando o mundo era dominado pela Igreja Católica. O sujeito nem precisava questionar a natureza divina de Cristo ou a existência da Santíssima Trindade. Bastava dizer que a Terra não estava estática no centro do Universo para ser ameaçado com a fogueira.

Já há alguns séculos, no entanto, a Igreja Católica deu-se conta de que essa “política” religiosa não tinha lá muito futuro. Deixou a intolerância de lado e passou a abraçar o amor e a caridade como pilares de sua missão no mundo. Hoje, filmes que outrora poderiam ser tidos como sacrílegos – como O Código Da Vinci – e clips propositadamente profanos – como Like a prayer – são alvo, quando muito, de uma nota pública do Vaticano condenando a perversão. Não há manifestações nas ruas, não há queima de bandeiras ou exemplares de livros, nem muito menos Dan Brown ou Madonna foram ameaçados de morte por algum membro do clero. A evolução conduziu à tolerância, e é ela que se impõe agora como marca da civilização.

Mas se o cristianismo avançou com o tempo, o islamismo, em várias paragens, parece parado no século VII. Tudo bem que parte dessa violência pode ser creditada às maldades que os americanos praticam mundo afora. Sob esse ângulo, o filme serve apenas como pretexto para se devolverem as violências sofridas na forma de atentados a embaixadas. No entanto, arrisco-me a dizer que nenhum desses atos criminosos tomaria lugar se houvesse por parte das autoridades islâmicas uma firme oposição a esse tipo de ato. É a leniência dos líderes religiosos que conduz à intolerância, e dela à violência.

Na verdade, os cristãos não passaram a ser “bonzinhos” por vontade própria. Haveria ainda hoje pencas de pessoas dispostas a torturar e matar “em nome do Senhor”. Por que não o fazem? Porque a “recompensa” para esse tipo de conduta seria inteiramente divina. Quando a Igreja nega chancela à violência, o sujeito perde o “estímulo” para exercer sua intolerância religiosa. Quando a condena expressamente, aí é que o sujeito deixa de fazer a maldade, mesmo. Afinal, como “matar em nome do Senhor” se o “prêmio” para a maldade será uma passagem direta e sem escalas para o inferno?

É isso que falta ao Islã. Na verdade, o que há em alguns países é o exato oposto. No caso de Rushdie, por exemplo, a fatwa veio diretamente do Líder Supremo do Irã. Em outros casos, atentados a judeus e americanos são louvados como “resposta” ao “imperialismo” ianque. Em comum entre eles está a exaltação da intolerância como política religiosa e da violência como recurso legítimo contra as “ofensas religiosas”.

Ou as autoridades religiosas muçulmanas evoluem e se dão conta de que tolerar a intolerância só conduz a mais violência, ou o mundo ainda vai assistir por muito tempo episódios como os que ocorreram nesta semana.

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