Ainda o Paraguai, ou Golpe x Revolução

Ao contrário do que eu imaginava, a discussão sobre a “legalidade” do golpe no Paraguai ainda está dando pano pra manga. Embora eu inocentemente achasse que a imprensa em peso se posicionaria pela caracterização de golpe no Paraguai, muitos articulistas de renome – e outros nem tanto – jogam suas fichas dizendo que o que se passou em Assunção não pode ser caracterizado como “golpe”, mas como uma legítima manobra parlamentar.

A questão, a meu ver, passa pela dificuldade lexical de determinar o que seja um golpe, o que seja uma revolução e, caracterizados ambos, o que seja por exclusão algo natural da ordem democrática.

É fato: a definição desses termos põe em lados opostos vários historiadores e até mesmo estudiosos do vernáculo. Por exemplo: há mais ou menos um consenso de que a derrubada de Jango em 1964 foi um golpe, e não uma “Revolução Gloriosa”, epíteto que os gorilas lhe deram. Mas a Revolução de 30 foi uma revolução ou foi um golpe? A destituição de Carlos Luz e Café Filho do exercício temporário da presidência, promovida pelo Marechal Henrique Teixeira Lott para garantir a posse de Juscelino Kubitschek, foi um golpe ou uma manobra para garantir a continuidade da ordem democrática?

Antes de definir o que sejam golpe e revolução, é necessário definir seu exato oposto: normalidade institucional democrática. Por exemplo: Cuba. Há um presidente, uma Constituição e o povo vota. Em tese, portanto, estão presentes todos os requisitos para se caracterizar a ilha caribenha como um sistema democrático. Mas se trata de uma aberração, uma deformação democrática. Só se reconhece como legal o Partido Comunista Cubano. Logo, só pode se candidatar quem tem a chancela do partido. Além disso, opositores são perseguidos, presos e a censura corre solta. Por isso mesmo, ao menos enquanto os Castro continuarem por lá, Cuba é e continuará sendo uma ditadura.

Para caracterizar-se a normalidade institucional democrática é necessário, pois:

1 – uma Constituição que verdadeiramente limite os poderes do Estado;

2 – eleições livres, periódicas e regulares, sem haver “partidos proibidos”, nem restrições de votos a determinados setores da sociedade;

3 – respeito à dignidade da pessoa humana, ou seja, vedação de penas cruéis e degradantes, assim como prática, legal ou não, de tortura.

Pois bem. Dito isto, haverá um golpe quando a normalidade institucional democrática for rompida por um movimento militar, cívico ou cívico-militar. Nesse caso, a liberdade de decisão do povo por meio do voto é violada com base na força, com a imposição de representantes não eleitos pelo grupo golpista.

Por esse critério, portanto, foram golpe, dentre outros, a Revolução de 30 e o Golpe de 64. Pelo mesmo critério, o contragolpe do Marechal Lott não pode ser caracterizado com golpe, porque se destinou a assegurar a posse de representantes eleitos pelo sufrágio popular.

Do lado contrário, haverá revolução sempre que não estivermos numa situação de normalidade institucionao democrática. Trata-se de um movimento militar ou cívico-militar destinado a destronar um governo que não respeita os princípios básicos de normalidade institucional democrática. O que a define é a rebelião contra um governo que não respeita os critérios acima enumerados, embora, à primeira vista, seus movimentos possam ser assemelhados a um golpe tradicional.

Adotando-se essa definição, foram revolução – e não golpe – a deposição de Getúlio em 1946, a derrubada de Khaddafi e Mubarak na Líbia e no Egito em 2011 e, claro, a Revolução Francesa.

Diga-se, porém, que a revolução pode ser ou não democrática, isto é, à deposição do regime tirano não se seguirá necessariamente um governo democrático – como aconteceu no Congo de Desirée Laurent-Kabila.

Mas, afinal, no caso paraguaio houve ou não um golpe?

Houve um movimento cívico, promovido pelas elites locais, destinado a destituir um presidente antes do fim do seu mandato. Logo, houve um golpe. Não um golpe clássico, é verdade, mas um “golpe branco”, uma destituição de um representante legitimamente eleito através de mecanismos que forjam a legalidade da destituição.

E não me venham dizer que o impeachment por “mau desempenho do cargo” está previsto na Constituição paraguaia. O simples fato de que, entre o início do processo e a execução da sentença, passaram-se somente 36 horas é suficiente para tirar qualquer aparência de legalidade do movimento.

Fora isso, é da essência do sistema democrático o julgamento de mérito do governante única e exclusivamente pelo povo, através do voto. Transferir essa competência para o Parlamento é admitir que o povo pode ser privado de seu poder natural de escolha dos representantes.

Se isso não for golpe, eu não sei mais o que é.

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