As pessoas têm por hábito deixar num canto esquecido da memória as coisas ruins que lhe passam. É normal, é natural. Mas, por outro lado, os psicólogos defendem que você só consegue superar verdadeiramente um trauma quando o “elabora”, isto é, quando fala sobre ele, reflete sobre o acontecido e convive com ele até deixar de ser um trauma.
Pois bem. Seguindo os conselhos dos psicólogos, tratarei aqui de um trauma passado no primeiro semestre da faculdade.
Uma das primeiras cadeiras era “Introdução à filosofia e à epistemologia jurídica”. Reinava nela um professor autocrata, ditador mesmo. Logo no começo das aulas, resolveu fazer um “sorteio”. A cada aluno corresponderia um filósofo da história, sobre o qual o “sortudo” deveria fazer um trabalho resumindo o seu pensamento.
Este que vos escreve – sempre sortudo – foi agraciado com Jean-Paul Sartre. Que sentido fazia escrever sobre a filosofia do século XX sem sequer ter estudado a grega de V a.C., não sei. O fato é que tive que me virar com Sartre por longos seis meses.
Sartre era o prócere de uma nova corrente filosófica: o existencialismo ateu. Comunista, Sartre renegava a existência do divino. Para ele, deveria ser contruída uma moral laica, quer dizer, um modo de conduta e de comportamento corretos independentes de um preceito religioso, ou que não fossem “impostos” por um Ser Superior. Daí a sua famosa frase: o homem está condenado a ser livre. Isto é: estamos sozinhos no universo.
A solução, para ele, passava pelo existencialismo. A tese é simples: a existência precede a essência. Ou seja: o homem existe antes de ser. São as ações que pratica durante a vida que determinam quem o sujeito é. Por isso, todo ser humano deve perguntar-se, antes de cada pequena ação, de que modo esta contribui para o seu projeto particular de ser humano.
Nesse ponto, a doutrina existencialista aproxima-se um pouco da moral kantiana. Para Kant, antes de cada ação o sujeito deveria se perguntar o que aconteceria se ela fosse elevada à condição de “universal da conduta humana”. Em outras palavras: o que aconteceria se todo mundo fizesse o que eu faço?
O pensamento de Sartre é algo assustador e depressivo. Na minha opinião, Sartre depositava pouca fé no ser humano. Para ele, o homem não estava preparado para a enorme responsabilidade de decidir sozinho o seu destino. Daí a náusea (explicada em um de seus livros cujo o título é o mesmo), a angústia sentida antes de cada decisão a ser tomada.
De todo modo, mesmo com esses poréns, o pensamento de Sartre fez muito sucesso na época. Vivia-se os loucos anos 60, de revolução sexual, revoltas estudantis e disseminação maciça de drogas. Sem querer, captou o espírito de uma geração que clamava por mudanças na sociedade. “Construa você mesmo o seu futuro”; era assim que as massas de estudantes compreendiam o existencialismo defendido por Sartre.
Para os mais entendidos – não é o meu caso -, a doutrina de Sartre é repleta de furos. Quer dizer: quem consegue entender o que ele escreve afirma que tudo aquilo não faz o menor sentido. Se faz mesmo ou não, não sei. O que importa é que Sartre capitalizou bem a fama agaranhada. Viajou o mundo propagando sua fé no existencialismo ateu e defendendo o comunismo como alternativa política. Transformou-se num dos ícones de uma geração que mudaria o rumo da história.
Para o bem e para o mal, o mundo passou a ser mais exitencialista desde aquela década. Pena que não tenha se tornado mais responsável.