A Lei Feijó, ou Operação para inglês ver

Passada mais de uma semana desde a “Operação Contenção” no Rio de Janeiro, alguns fatos já estão claros: 1 – Dos 100 mandados de prisão expedidos pela Justiça, apenas 20 foram cumpridos; 2 – Dos mais de 100 mortos pela operação, um total de ZERO estavam na lista dos denunciados; 3 – O principal alvo da polícia, o traficante e líder do Comando Vermelho “Doca”, não foi preso nem morto. Do ponto de vista objetivo, portanto, a operação não pode ser qualificada senão como fracasso.

Resta saber, ainda, as razões que a motivaram. O genial Celso Rocha de Barros alega, em coluna na Folha de São Paulo, que a operação serviu apenas para impedir que o Comando Vermelho tomasse conta de uma das últimas áreas ainda não dominadas pela facção. Detalhe: os Complexos da Penha e do Alemão não foram “libertados” pelas forças policiais. Eles continuam sob o domínio das milícias.

A Operação foi para impedir que o CV dominasse o Rio como o PCC domina São Paulo? Não sabemos, e nem a polícia nem o governador Cláudio Castro – que já deveria ter sido cassado pelo TSE pelo escândalo do Ceperj na eleição passada – se dignaram a explicar o motivo. Até agora, de concreto apenas a sensação de que a operação serviu apenas enxugar gelo, com nítidos propósitos eleitorais. Ou, para usar uma expressão de antigamente, foi apenas “para inglês ver”.

Para quem não sabe, essa expressão nasce como subproduto de uma ironia histórica que, a exemplo da piada que corre nas redes insociáveis, representa o Brasil more than soccer and samba.

Quando ascendeu como superpotência dominante no final do século XVIII e começo do século XIX, a Inglaterra passou a dominar amplamente o comércio mundial. No “Império onde o sol não se punha”, defendia-se o fim da escravidão não somente por questões humanitárias, mas, principalmente, por questões econômicas. Afinal, sendo o negro negociado como uma mercadoria, ele não poderia jamais se tornar um consumidor. Com sua hegemonia marítima incontestada – a Marinha inglesa era maior do que todas as outras marinhas do mundo somadas –, a Inglaterra resolveu simplesmente proibir o tráfico de escravos nos mares.

Qual o problema?

Dependente política e economicamente da Inglaterra, o Brasil ficaria de mãos atadas. Seja porque a agricultura dependia fundamentalmente do trabalho escravo, seja porque a escravidão era ela própria a anomalia ao redor da qual estava estrutura a economia do Brasil Império, o fato é que a abolição do tráfico negreiro provocaria uma verdadeira revolução social naquele tempo.

Para “piorar” a situação da classe política daquela época, o Brasil nem sequer Imperador mais tinha. Em 7 de abril de 1831, D. Pedro I abdicara do trono brasileiro para lutar pela sucessão da coroa na sua pátria-mãe. Como bom déspota, o futuro D. Pedro IV de Portugal legou o comando do Brasil ao seu filho, D. Pedro II, então uma criança de 5 anos. Uma vez que não passava pela cabeça de ninguém da elite abandonar a monarquia e transformar o Brasil numa república, veio, então, o Período Regencial.

O primeiro regente foi o Padre Diogo Antônio Feijó. Espremido entre a elite escravocrata e a pressão internacional da Inglaterra, o Padre Feijó escolheu literalmente sair pela tangente. Em 7 de novembro de 1831, ele fez aprovar uma lei que proibia o tráfico de escravos pelo Brasil. Mais. Todos os africanos escravizados que aqui desembarcassem seriam considerados cidadãos livres. Pior. Os traficantes incorrerão em “na pena corporal do artigo 179 do Código Criminal” (3 a 9 anos de cadeia), além de “ multa de duzentos mil réis por cabeça de cada um dos escravos importados” e o pagamento das “despezas da reexportação para qualquer parte da Africa”. Como de hábito nestas terras onde canta o Sabiá, deram ao normativo legal o nome de seu patrocinador: “Lei Feijó”.

Bela na forma e firme no conteúdo, a lei era profundamente hipócrita no seu propósito. No final das contas, a ninguém interessava colocar em prática as imposições que a Lei Feijó: nem aos senhores de engenho, que dependiam dos escravos para sua atividade econômica, e nem ao governo, que dependia economicamente dos impostos cobrados à burguesia escravocrata. A lei não passava de uma farsa mal-ajambrada visando a disfarçar, mal e porcamente, a continuidade do tráfico negreiro no país.

A esse respeito, os números não mentem: entre a Lei Feijó (1831) e a Lei Eusébio de Queirós(1850), que efetivamente deu cabo ao tráfico de escravos, nada menos do que 800 mil africanos foram traficados ilegalmente para o Brasil. Longe de ser suprimido, o tráfico se tornou mais lucrativo e ainda mais violento, operando à margem da letra expressa da lei.

Ironicamente, a mesma gente que hoje ocupa as favelas do Rio de Janeiro era a que veio traficada ilegalmente para o Brasil após a aprovação da Lei Feijó. Não será exagero dizer que a esmagadora maioria das pessoas que hoje vive espremida entre a opressão do tráfico de drogas e a repressão indiscriminada da polícia são netos, bisnetos e tataranetos dos escravos traficados no Oitocentos. Ninguém com um mínimo de senso é capaz de defender que se trata apenas de uma coincidência que a maior parte dos favelados seja composta por negros. São negros porque compõem uma população marginalizada e, por marginalizada, é condenada a viver nas favelas.

Operação policial nesse cenário, sem recuperar um milímetro de território ocupado pelas facções e deixando de prender a principal liderança do CV na favela?

É só para inglês ver, mesmo…

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