Assim como prometido no começo deste ano, passada a tradicional comemoração de aniversário do Blog, nesta semana teremos um especial sobre o flagelo que se abateu sobre o país nestes últimos quatro anos. Sim, porque se a Bíblia fosse ser reescrita nos dias de hoje, seriam 11 as pragas do Egito, com o Bolsonarimo ocupando algum lugar entre a 9ª e a 10ª posição na ordem dos piores castigos enviados por Deus à Terra.
Antes de mais nada, contudo, deve-se dizer que há algo de exagero no emprego do vocábulo “autópsia”. Ao contrário do que a expressão sugere – e como parece bem claro, pois está à vista de todo mundo -, o bolsonarismo não morreu. Muito pelo contrário. Em alguns aspectos, ele continua mais vivo do que nunca, tamanha foi a sua capacidade de dominar corações e mentes pelo país, até se entranhar definitivamente na vida política nacional.
Não, meus caros, “autópsia” não está aqui no seu sentido vulgar, daquilo que costumamos conhecer como o exame detalhado de uma pessoa morta. O sentido que este texto pretende emprestar ao termo diz mais respeito à dissecação do fenômeno, de modo a tentar entender de onde vem a sua força e como ele deitou raízes tão profundas na sociedade brasileira. Com alguma sorte, a compreensão de alguns conceitos permitirá que possamos encontrar uma saída para esse labirinto no qual nos aprisionamos e, quem sabe, poder olhar pra frente com mais esperança.
O primeiro passo para tentar compreender o bolsonarismo como fenômeno social demanda uma resposta apriorística: quem é o “fanático bolsonarista”?
A maioria de nós conhece ou mesmo possui na família pessoas que podem ser enquadradas no gênero “bolsonarista”. Mas é certo que serão poucos aqueles que terão firmeza para declarar que determinada pessoa é uma “fanática”.
A dificuldade para esse, digamos, “diagnóstico”, deriva da própria fluidez do termo “fanático”. É dizer: quem pode ser caracterizado como “fanático”? Há gente que passa fake news sobre Lula ter morrido e um sósia com 10 dedos nas mãos teria ocupado seu lugar. Nenhuma dessas pessoas se reconhecerá a si mesma como “fanática”. Para elas, possivelmente quem foi à frente dos quartéis pedir um golpe de Estado contra o “comunismo” ou coisa que o valha é que talvez possa ser enquadrada como “fanática”.
Todavia, dificilmente quem foi aos quartéis se assumirá como fanático. Talvez essas pessoas apontem o dedo do fanatismo para o “patriota do caminhão”, o sujeito que se atraca à frente de uma carreta e nela circula pendurado por 50km numa rodovia em alta velocidade. O patriota do caminhão, por sua vez, jamais se reconhecerá como fanático. Ele provavelmente apontará o dedo para os criminosos que promoveram o terror no dia 8 de janeiro, vandalizando as sedes dos três poderes em Brasília.
Para sair do casuísmo e permitir compreender melhor o fenômeno, a única saída é estabelecer um critério objetivo para determinar a fronteira do fanatismo. Do contrário, o que teremos será sempre pessoas que se recusam a assumir o rótulo infame, afirmando-se não serem “fanáticas” e apontando o dedo do fanatismo para coisas ainda mais bizarras, na esperança de com isso justificar as suas próprias ações.
Nesse caso, o recurso mais objetivo talvez seja recorrer ao próprio sentido vernacular do termo. Na sua acepção mais comum, o fanatismo está ligado à paixão a algo que pode levar a atos extremos de intolerância. Entretanto, fanatismo não é só isso. Sob um aspecto puramente político, fanatismo também pode significar a adesão cega a algum sistema ou doutrina. Significa um tal alheamento da realidade que seus olhos (e, mais importante, seu cérebro) afastam-se dos caminhos normais do raciocínio para enxergar uma realidade enviesada. E aí, meus amigos, o bolsonarismo encontra seu mais perfeito espelho.
Do ponto de vista puramente objetivo, não existe qualquer parâmetro através do qual seja possível a uma pessoa dizer, de maneira racional, que votar em Lula seja pior do que votar em Bolsonaro, em especial e sobretudo se a matéria analisada fosse corrupção. Salvo os passadores de pano regiamente pagos para dizerem asneiras em favor do “Mito”, ninguém em sã consciência pode acreditar que, d’algum modo, a corrupção petista foi maior do que a corrupção no governo Bolsonaro. O orçamento secreto e a farra do cartão corporativo são apenas os exemplos mais concretos dessa afirmação. E se mais não foi descoberto ainda é por conta dos malditos sigilos decretados pelo ex-presidente em tudo que lhe pudesse causar inconveniente.
Na pior das hipóteses, portanto, se a pessoa não quisesse de forma nenhuma ter de escolher entre as duas alternativas, a única possibilidade coerente seria votar nulo. Não há, repita-se, sob qualquer aspecto que se faça a comparação, uma única alternativa que pudesse justificar racionalmente a escolha de Bolsonaro no lugar de Lula. Para fazer a opção pelo 22, a pessoa teria que deliberadamente ficar cega para todos os tipos de parâmetros, inclusive ao fato basilar de que, até como ser humano, Lula é uma pessoa melhor, mas muito melhor do que Bolsonaro.
A fronteira que o Blog propõe para divisar o fanatismo, portanto, é delimitada claramente pela opção do sujeito na hora de depositar o seu voto na urna. Quem votou em Bolsonaro no segundo turno (no primeiro, a dúvida estaria de qualquer maneira fora de questão), é, por definição, um fanático. Quem anulou o voto ou simplesmente optou por não comparecer, encontra-se fora do âmbito do fanatismo.
Será essa uma definição por demais polêmica?
Sem dúvida.
Mas o propósito deste espaço não foi sempre dar a cara a tapa?