Não existe bicho mais egocêntrico do que o ser humano. Desde a criação do Universo até a noção equivocada de que tudo que está neste planeta d’alguma forma lhe pertence, o bicho-homem acredita que tudo gira à sua volta. O antropocentrismo está de tal maneira arraigado no inconsciente coletivo que por vezes é difícil imaginar que os demais animais, as plantas e a infinidade de seres vivos habitam este pequeno canto do universo tanto quanto nós.
Obviamente, isso não aconteceu por acaso. Com o cérebro mais desenvolvido do reino animal, o homem tomou para si o topo da cadeia evolutiva. Nessa posição, subjugou todo o planeta à sua incrível capacidade de transformar o ambiente no qual vive. O fato de conseguirmos elaborar pensamentos abstratos, deduzir fórmulas para compreender a natureza e ter, literalmente, “consciência” do que se passa ao nosso redor, naturalmente nos tornou arrogantes. E a arrogância, como todos sabem, é má conselheira.
Vejamos, por exemplo, a Ética. Embora seja um ramo da filosofia, não seria inteiramente equivocado entender a Ética como uma “ciência do comportamento”. No fundo, trata-se de exercício reflexivo de procurar compreender qual a melhor forma de se portar, perante si e perante os outros. Parte-se do pressuposto de que o homem, do alto da sua “razão”, é capaz de conceber de maneira racional qual a conduta mais correta a se tomar frente a determinado desafio.
Mas será que é assim que as coisas funcionam? Imagine o seguinte exemplo:
Você está no meio de uma ferrovia, segurando uma daquelas manivelas responsáveis por mudar os trilhos de lugar e, consequentemente, determinar a direção que o trem vai seguir. À sua frente, vem um comboio inteiramente desgovernado, que vai se chocar contra o primeiro obstáculo que vier. Se você girar a chave para a direita, matará apenas uma pessoa residente numa casa ao final da ferrovia. Se girar para a esquerda, morrerão 22 pessoas perdidas numa partida de futebol. Para qual lado você girará a chave?
“Para a direita, óbvio”, responderá você com um certo ar de enfado.
De fato, pesquisas relatam que, nessas circunstâncias, todos (ou quase todos, fora os psicopatas) farão a escolha mais “racional” e “matarão” o pobre incauto que está indefeso em sua casa. Tudo, claro, para salvar os 22 peladeiros de final de semana. Intui-se, até por razões matemáticas, que, presente a certeza da morte, seja mais razoável matar uma só pessoa ao invés de 22.
Pois bem. Imaginemos agora uma situação semelhante. Você está em cima de uma ponte sobre a ferrovia. O trem desgovernado dirige-se incessantemente em direção ao campo de futebol. Não há forma de pará-lo ou de mudar a sua direção. A única alternativa que se tem é pegar um sujeito obeso que está ao seu lado e lançá-lo lá de cima, de modo que sua queda quebre os trilhos da ferrovia, provoque um descarrilamento e salve os peladeiros.
E aí? Faz o quê?
Por incrível que pareça, a maior parte das pessoas dirá ser incapaz de lançar o pobre gordo da ponte para salvar os jogadores de futebol. E nem se trata de alguém próximo, que fique claro. Era apenas mais um transeunte que assistia, tão incrédulo quanto você, à perspectiva do desastre se avizinhando.
Por que a mudança de entendimento? Objetivamente, a situação é a mesma. Trata-se de trocar a vida de uma pessoa pela salvação de outras 22. A única diferença reside no fato de que, enquanto na primeira hipótese você não enxerga o sujeito que vai morrer, na segunda você não só o vê como o utiliza como ferramenta para impedir o desastre. Embora do ponto de vista ético a situação em nada se altere, do ponto de vista natural tudo muda.
Instintivamente, nós fomos programados para nos afeiçoar pelo próximo. Não se trata de algo racional. Pelo contrário. É o mais profundo do nosso nível animal. Está na nossa programação biológica, quiçá a nível celular, estabelecer uma conexão com o semelhante que está ao nosso lado. Por isso é mais difícil “nos livrar” de uma pessoa que está na nossa frente do que outra, que está fora do nosso alcance de visão.
E daí?
Daí que, se a escolha nesse tipo de situação obedece a critérios “não éticos” – e, portanto, “não racionais” -, deve-se entender ser no mínimo presunçosa a noção de que podemos desenvolver uma “ciência” que explique a melhor forma de nos comportamos. Na imensa maioria dos casos, tomamos uma decisão com base numa programação biogenética que nos antecede. Mais ou menos como ocorre na Matrix, o sujeito não está aqui pra tomar uma escolha; essa escolha já está feita. Resta, apenas, procurar compreender por que ela foi feita.
No fundo, o desenvolvimento de uma “ciência comportamental”, destinada a explicar a nível filosófico uma explicação racional para as nossas condutas, esbarra numa verdade incontornável: nós somos animais, programados de acordo com uma combinação genética que remonta a mais de seis milhões de anos atrás.
Enquanto cientistas e filósofos não conseguirem compreender isso, continuaremos a trilhar o caminho da escuridão.