O pedido de suspeição de Gilmar Mendes

Tava demorando.

Depois de vários pedidos arquivados ao longo do tempo, parece que enfim o Supremo Tribunal Federal vai levar a plenário o julgamento da suspeição de um de seus ministros. Depois de conceder habeas corpus a réus acusados de corrupção y otras cositas más, o ministro Gilmar Mendes teve sua imparcialidade questionada pela Procuradoria-Geral da República. Alega-se que o ministro mantém com os acusados relação de amizade, o que prejudicaria sua capacidade de analisar o caso com isenção. Independentemente do mérito da questão, eis aí um bom mote para explicar um pouco mais sobre as hipóteses de suspeição e impedimento dos magistrados.

Mesmo quem não é familiarizado com as letras jurídicas pode intuir que um dos princípios mais basilares do processo é a imparcialidade do julgador. Ao lado do princípio do juiz natural, a imparcialidade é que assegura ao litigante a resolução do caso de isenta, sem que a sentença esteja sujeita a idiossincrasias do magistrado. Enquanto o juiz natural determina a preexistência do ente judicial ao litígio, de maneira a impedir a nomeação de juízes ad hoc, a imparcialidade assegura que o juiz anteriormente existente não vai decidir a causa de acordo com a afinidade que tenha com qualquer das partes. Trata-se, portanto, de um princípio legitimador do conceito de Justiça.

Do ponto de vista estritamente jurídico, a imparcialidade do julgador pode manifestar-se de duas maneiras: por impedimento ou por suspeição.

No primeiro caso (art. 252 do Código de Processo Penal e art. 144 do Novo Código de Processo Civil), os requisitos são de ordem objetiva. Para sua configuração, basta que estejam presentes quaisquer das circunstâncias previstas na lei para que o juiz seja afastado do processo. É o caso, por exemplo, das hipóteses em que o próprio magistrado tenha testemunhado para uma das partes, ou, ainda, quando uma das partes seja seu parente. Nesses casos, há uma presunção absoluta de que o juiz não tem qualquer isenção para decidir a causa.

No segundo caso (art. 254 do CPP e art. 145 do Novo CPC), os requisitos são de ordem subjetiva. Tratam-se de hipóteses nas quais a imparcialidade diz respeito a questões de foro íntimo. O exemplo clássico da suspeição é a amizade íntima ou a inimizade notória. Não se trata de circunstância que possa ser aferida de imediato, como as relações de parentesco. É algo que depende de provas e, mesmo assim, de uma análise mais profunda do tipo de relação que o juiz tem com alguma das partes. Por isso mesmo, a presunção de malferimento da imparcialidade é tão-somente relativa nesse caso.

Mas por que a lei determina as hipóteses de suspeição e impedimento?

Para além da obviedade de responder que “porque o princípio da imparcialidade manda”, a preocupação do legislador diz respeito à legitimidade do próprio Poder Judiciário. Como o “mandato” dos juízes não advém diretamente do povo (como ocorre no Legislativo e no Executivo), a sua legitimação como representantes do poder estatal dá-se a posteriori, através da fundamentação de suas decisões. E, para que essa fundamentação atenda estritamente a quesitos de ordem técnica, não pode pairar a menor sombra de dúvida quanto à isenção do julgador.

Dito isto, o que vai acontecer no caso de Gilmar Mendes?

De início, pode-se dizer que a repercussão que o caso ganhou quase que obrigou o Supremo a tomar uma posição. Até hoje, nenhum pedido de suspeição ou impedimento de ministro foi sequer levado a plenário. Como o STF julga milhares de casos por ano e lá se vão quase três décadas de Constituição de 1988, é difícil acreditar que nenhuma dessas alegações tivesse fundamento suficiente para ser acolhida. Donde se conclui que, pelo menos até agora, tem prevalecido o corporativismo entre Suas Excelências.

Fora isso, a própria personalidade do ministro Gilmar Mendes ajudou a determinar o julgamento do pedido apresentado pela PGR. Noves fora os embates públicos com Rodrigo Janot, é público e notório que Gilmar coleciona desafetos no próprio STF. Embora ninguém vá assumir isso explicitamente, parece evidente que os inimigos de Gilmar na Corte enxergam nesse pedido uma oportunidade preciosa para emparedar o adversário.

Dando-se de barato que o pedido será julgado, é difícil antever se haverá maioria pelo afastamento de Gilmar Mendes. Mesmo ministros que não nutrem maiores simpatias pelo colega de toga podem se sentir tentados a dar aos ouvidos ao espírito de corpo que sempre reinou no Supremo. “E se amanhã for eu?”, podem pensar alguns. Daí porque qualquer prognóstico sobre o tema é deveras arriscado, por ora.

A única coisa da qual se pode ter certeza é que, ao contrário do que determina o regimento interno do STF, a sessão na qual se decidirá o destino de Gilmar Mendes como relator desses casos será pública. Além de não haver como compatibilizar o regimento com o que determina a Constituição (“todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos…” – art. 93, inc. IX), nenhum dos ministros arrostaria o ônus de eventualmente rejeitar um incidente de suspeição ou impedimento numa sessão secreta. A credibilidade do Supremo Tribunal Federal, que já tem sido bastante arranhada nos últimos tempos, ficaria severamente abalada aos olhos da opinião pública.

Seja qual for o resultado do julgamento, espera-se apenas que ele atenda a critérios estritamente jurídicos. É o mínimo que se espera de gente que ocupa de forma vitalícia as mais cobiçadas cadeiras do Poder Judiciário nacional.

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