Desde o começo do ano eu pensava em acrescentar mais uma seção aqui no Blog. Talvez porque minha alma pernambucana me incitava, assim como a Bandeira, a tornar-me um cronista, nem que fosse de província. Talvez porque já estivesse começando a enfadar-me a mim mesmo com as seções que já constam neste espaço. Mas o certo é que sempre quis sair da mesmice. Em um Blog dedicado em todas as suas seções ao retrato da realidade, a ficção parecia a escolha óbvia para abandonar o marasmo.
O fato, porém, é que a falta de tempo aliada à preguiça acabaram por me fazer adiar a idéia. Agora, como os afazeres domésticos me obrigarão a passar mais tempo em casa, acredito que seja altura de enfim trazer ao mundo uma perspectiva diferente deste que vos escreve. Como diria Brás Cubas em seu intróito, se a nova seção te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Eis, portanto, as Crônicas do Cotidiano.
Perguntas sem respostas
Era um velho surdo, mas insistia em dizer que escutava bem. “Você é que fala baixo!”, resmungava ele, sempre quando confrontado com a própria surdez. Quando chegava outra pessoa e ele gritava “O quê?!?”, indicando que não a ouvira, a culpa invariavelmente recaía sobre ausência de familiaridade da voz. Restava, então, manter uma conversa cara a cara com o sujeito. Assim, a leitura labial fazia o serviço que os ouvidos não eram mais capaz de prover. E a vida seguia.
Envolvido certa feita numa pendenga judicial, o velho socorreu-se de seu neto advogado para safar-se de outro causídico que lhe tentava passar a perna. A causa era até relativamente simples, mas exigia algum nível de documentação e relato fático, coisas que só ele poderia prover. Com o prazo em seus calcanhares, o neto liga para o avô. Alcançado pelo telefone, o sujeito já atendeu reclamando:
“Por que você não vem aqui?!”
“Não posso, vô. Tenho que entregar a contestação amanhã”, respondeu acabrunhado o neto-advogado.
Iniciava-se um verdadeiro parto telefônico. A cada pergunta que o neto formulava, o avô respondia um “O quê?!?!?” cada vez mais alto. Naquele ritmo, ao fim do telefonema o edifício inteiro já estaria ouvindo a conversa, tal era a elevação da escala auditiva. Um assunto que levaria pouco mais de dois minutos tomou uma longa meia hora para ser resolvido. Quando finalmente conseguiu obter as informações de que necessitava, o neto, já exausto pela rouquidão da maratona telefonística, suplicou ao avô:
– “Vô, o senhor precisa de um aparelho para surdez!”
– “O QUÊ?!?”, gritou de volta o avô.
– “UM APARELHO PARA SURDEZ!!!”, berrou o neto.
– “REVISTA DE NUDEZ?!?”, indagou sem entender o avô.
Já quase sem voz, o neto fez um último esforço:
– “NÃO, VÔ! UM A-PA-RE-LHO PA-RA SUR-DEZ!!!”
– “UM APARELHO PRA SURDEZ?!?”
– “ÉÉÉÉÉ!!!”, exclamou o neto, pensando que finalmente encerrara a conversa.
Mas foi aí que o avô perguntou:
– “PRA QUÊ?!?!?”
Começaste muito bem caro amigo. Como é bom e gostoso retratar causos do tipo, notadamente quando somos participes e “contracenamos” com alguém tão especial e amado. Parabéns pela iniciativa.
Obrigado, meu nobre. Um abraço.
Lembre-me de conversas tuas na sala. Muito legal a sua inspiração. Concordo com o André
Valeu, Comandante. Um abraço.
Lembrei-me