O espectro político de cabeça pra baixo, ou A verdade sobre o Welfare State

Um dos debates mais acalorados do mundo político hoje em dia é sobre a débâcle ou o virtual desaparecimento do chamado Welfare State. Nirvana de 11 em cada 10 países pretendentes a potências econômicas, o Estado de Bem-Estar Social é a consagração de uma idéia de país no qual o capitalismo consegue ser domesticado a ponto de redistribuir parte de sua riqueza a toda a população, seja na forma de renda pura e simples, seja na forma de serviços e benefícios sociais (hospitais e escolas públicas gratuitas, auxílio ao desemprego, etc.)

Principalmente na Europa corroída pela crise do Euro, as políticas de austeridade estão a desmontar toda a teia de proteção social criada durante o século XX, especialmente depois do fim da II Guerra Mundial. De um lado, liberais (“de direita”) seguem na sua marcha contra as políticas públicas de saúde, educação e emprego promovidas pelo Estado, enquanto, do outro lado, os progressistas (“de esquerda”) convocam as massas para denunciar o desmonte e brigar para que elas sejam mantidas.

À primeira vista, nada de mais. Afinal, reza a lenda que, se o sujeito é “de direita”, deve pregar o Estado mínimo, a não concessão de benefícios sociais e a ampla liberdade de iniciativa. Ao seu passo, os defensores “da esquerda” devem fazer o exato oposto: defender o Estado “forte”, a manutenção e a expansão das políticas sociais e a intervenção estatal na economia.

O que pouca gente sabe é que, em sua origem, o espectro político funciona ao contrário: são os liberais, os sujeitos “de direita” que pregam a implementação do Welfare State. E são os progressistas, os marxistas, os cidadãos “de esquerda” que defendem a sua derrubada.

Na verdade, embora não tenha cunhado a expressão, o Welfare State nasceu da cabeça do mais insuspeito dos sujeitos de direita que já caminharam nesta terra: Otto von Bismarck. Sim, o eterno chanceler prussiano foi o responsável pela primeira experiência moderna de implementação de políticas públicas que mais tarde se revelariam a base daquilo que hoje chamamos de “Estado de Bem-Estar Social”.

Em 1883, Bismarck fez aprovar na já unificada Alemanha uma lei a instituir o “seguro-saúde”, a qual garantia à maioria dos trabalhadores alemães até 13 semanas anuais de auxílio em caso de doença. No ano seguinte, o Reichstag aprovou a lei de “acidentes”, que expandia os benefícios assegurados na lei do “seguro-saúde”. Para terminar, em 1889, o parlamento alemão sancionou a lei de seguros e invalidez, embrião do que hoje se conhece como “previdência social”: o recebimento de uma renda para aqueles que, já esgotados pela idade, não podiam seguir trabalhando. Estes eram, portanto, o eixo do “Estado de Bem-Estar Social” imaginado por Bismarck.

Mas por que Bismarck, um sujeito reconhecidamente conservador, adotou semelhante idéia?

A proposição dele era muito simples. As idéias marxistas, para triunfarem, dependiam de um estado de revolta e convulsão interna da classe trabalhadora. Somente com o espírito revolucionário dos trabalhadores seria possível derrubar a classe dominante, representada pela burguesia, e instaurar a chamada “ditadura do proletariado”. No entanto, se a boca da classe trabalhadora fosse adoçada com dinheiro e benefícios sociais, o ímpeto revolucionário dessa mesma classe diminuiria até praticamente desaparecer. O Welfare State surge – vejam só – como forma de anular a possibilidade de uma revolução comunista.

Não à toa, ou antes mesmo por causa disso, Karl Marx foi um dos que primeiro denunciou o Welfare State como uma forma dissimulada de “cooptação” da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, Bismarck, com sua incomparável visão de futuro, defendeu-o com unhas e dentes, ainda que tenha tido de enfrentar oposição ferrenha de seus correligionários.

Vivos hoje, Bismarck e Marx se descobririam, respectivamente, um radical revolucionário de esquerda e a fina flor da mais reacionária direita.

Como diria Morpheus, fate, it seems, is not without its sense of irony.

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