Boa noite, Boa sorte

Já escrevi certa vez que o Oscar é apenas mais um entre vários prêmios do cinema mundial. Carrega consigo o glamour de Hollywood, a força do dinheiro e a máquina de propaganda americana. Talvez por isso seja reconhecido como “o” prêmio do cinema, apesar de não ser o mais antigo, muito menos o mais prestigiado pela crítica especializada.

A fama, contudo, tem seu preço. Se o Oscar é celebrado como a mais importante cerimônia atual da sétima arte, seus erros históricos são também os mais lembrados. No período recente, um dos maiores, na opinião deste que vos escreve, foi a passagem em branco de um dos melhores filmes já produzidos em Hollywood: Boa noite, Boa Sorte.

O filme revisita o histórico embate entre um jornalista de renome – Edward Murrow – e um político ambicioso, sem vergonha e popular – Joseph McCarthy.

McCharthy estava na crista da onda. Depois de uma infância pobre e de uma ascensão meteórica ao Senado, McCarthy passou a integrar o famigerado Comitê de Atividades Anti-Americanas. Como seu presidente, pra vergonha dos americanos, deu-se a maior perseguição política e ideológica da história dos Estados Unidos.Valendo-se do contexto da Guerra Fria e do medo inspirado pela “ameaça comunista”, McCarthy instaurou um verdadeiro regime de terror. Qualquer pessoa que, mesmo remotamente, estivesse de alguma forma ligada a “atividades suspeitas” era sumariamente enxovalhado perante o Comitê. Gente do cinema, do teatro e até mesmo do governo acusados de “simpatizar” com a causa comunista foram submetidos à execração pública. Esse período ficaria marcado para sempre como “McCarthismo”.

Do outro lado, estava um jornalista íntegro e respeitado. Sucesso no rádio desde que participou da cobertura da II Guerra Mundial como correspondente em Londres, Edward Murrow era uma estrela da então incipiente indústria televisiva. Contratado pela CBS, Murrow tinha um programa de variedades chamado Person to Person. Guardadas as devidas proporções, era como se pusessem Elio Gaspari para apresentar o programa Celebridades, da Angélica.

Mas era o outro programa que fazia a cabeça de Murrow. See it now era uma adaptação televisionada do seu programa de rádio Hear it now, no qual Murrow analisava assuntos de muito maior relevância. Desfiava o cenário político e batia com gosto na politicagem barata patrocinada por alguns espertalhões de Washington. Era questão de tempo até Joe McCharty entrar na sua alça de mira.

No dia 9 de março de 1954, Murrow deu seu primeiro tiro. Em um primoroso programa, denunciou as práticas antidemocráticas de McCarthy, expondo a heterodoxia de seus métodos. Sua acusação era simples: McCarthy não passava de um político oportunista, que capitalizava o medo da nação e o transformava em popularidade.

McCarthy atirou de volta, e à sua maneira. Aproveitando o espaço cedido pelo próprio Edward Murrow no See it now, acusou-o de ser simpatizante da causa comunista. Logo ele, um conservador de mais fina cepa. Claro, a única coisa que lhe restava era destruir a credibilidade de Murrow, tal qual destruíra a de todos os seus adversários ao relacioná-los à “ameaça vermelha”. Atacar-lhe a hombridade e a integridade seria perda de tempo.

Na réplica, Murrow foi direto ao ponto. Além de refutar as acusações de McCarthy, deu-lhe um xeque do qual não conseguiu mais sair. Disse Murrow: “Todo aquele que se opuser ou criticar seus métodos tem que ser um comunista. E se isso for verdade, temos muitos comunistas neste país“.

Daí pra frente, Murrow seguiu com sua campanha de desmistificação de McCarthy. Programa após programa, semana após semana, Murrow expunha os erros, os exageros, os absurdos praticados pelo senador de Wisconsin. Com o tempo, os erros de McCarthy foram se acumulando pelo caminho, e o Senado viu-se forçado a abrir uma comissão para investigar seus abusos. Por 67 votos a 22, McCarthy receberia a pena de censura. Daí pra frente, sua carreira estava acabada. O baluarte do anti-comunismo americano estava irremediavelmente ferido.

Se por um lado Murrow entraria para a história por ter derrotado McCarthy, à época a ousadia cobrou seu preço. Sem patrocinadores, o See it now foi mandado à gaveta, e Murrow ficou confinado ao papel de Diretor Educacional da CBS, quase como um alce empalhado no meio da sala; apenas para figurar como decoração. Como o Diretor Executivo da CBS, Bill Paley, diria ao próprio Murrow, “as pessoas querem se entreter, não querem ter lições de moral cívica“.

Conduzido por um George Clooney preciso como um relógio suíço, o filme se desenrola de forma redonda. Não há nada a tirar nem pôr naquela hora e meia de cinema. O fato de ter sido gravado em preto e branco confere à produção um ar meio noir, quase nostálgico. No entanto, essa aparente volta ao passado é logo abandonada quando se vê Murrow lutando, do começo ao final do filme, para que aquele instrumento de comunicação tão poderoso não se transformasse numa ferramenta de alienação.

Talvez por isso mesmo, ao negar dar-lhe um mísero Oscar por essa película soberba, Holywood vestiu a carapuça denunciada por Murrow. Ninguém gosta que lhe pisem os calos.

Abaixo, o discurso de Murrow sobre a decadência moral da indústria televisiva.

Com a triste constatação de que, hoje, o discurso é mais atual do que nunca.

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