Outro dia escrevi aqui sobre os problemas da transitividade verbal. Em poucas linhas, tentei esclarecer alguma coisa sobre o uso de verbos transitivos diretos, indiretos e diretos e indiretos. Mas um assunto que passou em branco naquele post merece agora ser destacado, porque constitui talvez um dos mais estranhos casos da língua portuguesa – e, não por acaso, causa diversas confusões quando você vai ter classificar o verbo. Falo dos objetos diretos preposicionados.
Sim, você bem sabe que preposição só deve acompanhar os verbos transitivos indiretos. Entre um verbo transitivo direto e seu objeto não deve haver intermediários: liga-se um a outro diretamente. Daí o nome “transitivo direto”.
Ocorre que, em determinados casos, faz-se necessário colocar uma preposição antes do objeto direto para tornar a frase no seu todo mais clara e deixar a mensagem cristalina para quem a receber. Quando isso acontece, tem-se o objeto direto preposicionado.
Fundamentalmente, usa-se o objeto direto preposicionado em duas situações: 1 – esclarecer o sentido que você quer dar ao verbo; 2 -evitar ambigüidades decorrentes da alteração da ordem da frase (as famosas inversões entre verbo, objeto e sujeito).
Veja-se o primeiro caso. Como se sabe, no português os vocábulos em geral e também os verbos são pródigos em sentido, isto é, possuem mais de um sentido, dependendo do contexto em que você o insere. É a tal da polissemia. Por exemplo: “adorar” pode ter o sentido de gostar muito ou pode ter o sentido religioso de adoração. Nesse caso, numa frase em que você diga “Eu adoro Deus”, o sentido da oração é “Eu gosto muito de Deus”. Assim, para deixar claro que você está utilizando o verbo no sentido religioso, coloca-se uma preposição para deixar clara a natureza da adoração: “Eu adoro a Deus”.
Mas os exemplos mais, digamos, “problemáticos” do objeto direto preposicionado dizem respeito à desambiguação, isto é, quando se faz algum tipo de inversão na frase e torna-se necessário usar uma preposição para esclarecer o seu sentido. O exemplo mais clássico desse tipo vem de uma canção de Caetano Veloso.
Em Sampa, atordoado pela chegada na selva urbana paulista, o baiano de Santo Amaro da Purificação reclama da “dura poesia concreta” das esquinas da cidade, assim como da “deselegância discreta” das meninas que por lá desfilam. Diante de um cenário tão horroroso, Caetano decreta: “Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto”. Depois disso, permite-se uma pequena autocrítica ao explicar que a sentença deriva do fato de que “Narciso acha feio o que não é espelho”. E então diz:
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Por que a crase em “à mente”?
Gênio como só ele, Caetano produz uma inversão na ordem da oração. Lida diretamente, a frase seria assim: ” E o que ainda não é mesmo velho apavora a mente”.
Trazendo-se o predicado para o início, a frase ficaria ambígua. Na frase “E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho”, não é possível definir com precisão quem é sujeito e quem é objeto. A frase tanto pode ser lida com o sentido de “a mente apavorando o que ainda não é mesmo velho”, ou pode ser lida como “o que ainda não é mesmo velho apavorando a mente”.
Obviamente, Caetano queria falar que aquela paisagem sombria e seca do concreto armado, cheio de “feia fumaça apagando as estrelas”, lhe apavorava. Por isso, ao promover a inversão, colocou a crase – preposição “a” + artigo “a” – antes de “mente”, de maneira a deixar claro o que queria dizer.
Entretanto, em todos os casos, não se engane: apesar da preposição, o verbo continua sendo classificado como transitivo direto. A preposição é somente, digamos, um acidente de percurso, um mal necessário ao sentido da oração.