Provavelmente nenhum dos leitores do blog é suficientemente velho para lembrar isso. Mas houve uma época em que o latim era ensinado nas escolas, as missas eram rezadas em latim e os padres, ao invés de rezarem a missa de frente para os fiéis, rezavam-na de frente para o altar. Tudo isso começou a mudar em meado da década de 60, logo depois do Concílio Vaticano II.
Para explicá-lo, é preciso voltar um pouco no tempo.
Giuseppe Roncalli, arcebispo de Veneza, fora eleito papa. Com o nome de João XXIII, Roncalli tinha por missão resgatar a força moral de uma igreja abalada pela escandalosa relação filonazista entre seu antecessor, Pio XII, e a trupe nacional-socialista. Eleito já no auge dos seus 77 anos, é possível que o Sacro Colégio Cardinalício o tenha escolhido pensando num papado de transição; alguém para esquentar o trono de São Pedro enquanto pensavam em esperar um outro papa para um reinado mais longo. Se era isso que pensavam, o tiro saiu bem pela culatra.
Reza a lenda que, ao discutir um assunto cabeludo, um dos assessores de João XXIII teria lhe dito: “Olha, por que Vossa Santidade não envereda por um assunto mais ameno e menos polêmico?” Ao que o Bom Papa João respondeu: “Boa idéia. Vamos convocar um concílio”.
Os concílios são reuniões majestosas da Igreja Católica destinadas a reunir prelados do mundo inteiro para definir rumos, discutir dogmas e firmar uma orientação de fé. Em outras palavras – para usar os termos do pessoal da administração – , um concílio nada mais é do que uma conferência destinada a montar grupos de trabalho.
No caso do Concílio Vaticano II, a questão era saber como a Igreja Católica se portaria diante daquilo que já se insinuava como a maior transformação tecnológica e ideológica de todos os tempos. A mudança de hábitos e o desenvolvimento de uma postura crítica à dogmática cristã ameaçava conduzir a Igreja Católica a uma crise de fé sem precedentes. Fustigado, de um lado, pelo islã e, do outro, pelas diversas correntes neopentecostais, o Vaticano concluiu: era preciso mudar.
Convocado em 1961, o Concílio reuniu 2.500 padres de todo o mundo. Discutia-se um monte nas reuniões, sempre numa tensão entre membros da Cúria romana e os prelados do resto do planeta. Enquanto aos primeiros interessava manter tudo como está – e, assim, manter seu poder sobre a burocracia papal -, aos demais interessava a descentralização do poder.
O Concílio estendeu-se até 1965, já no papado de Paulo VI, já que João XXIII morrera em 1963. Dele não resultou qualquer alteração de dogma. Tampouco se conseguiu reduzir de modo significativo a influência da Cúria na estrutura da Igreja. No entanto, várias mudanças na liturgia do rito acabaram por influenciar o restante do planeta.
A primeira foi a decisão de fazer com que o padre rezasse a missa de frente para os fiéis, e não mais de costas. Isso favoreceria uma maior interação e o desenvolvimento de empatia entre prelados e público. Leia-se: conseguiriam arregimentar mais fiéis.
Mas a mais importante foi a permissão de que as missas, doravante, fossem rezadas na língua vernacular de cada país. Antes rezadas em latim, as missas eram ininteligíveis para quem não dominasse o idioma dos césares e assemelhavam-se muito mais a teatrinhos onde os atores limitavam-se a recitar falas decoradas. Rezá-las na língua nativa do povo facilitaria enormemente a compreensão. De novo: o resultado seriam mais fiéis.
Desde então, o latim passou a declinar no mundo inteiro. Mesmo em países onde seu ensino era obrigatório – como no Brasil – , o estudo do latim passou a ser visto como um anacronismo. Aos poucos, foi-se abandonando sua obrigatoriedade até aboli-la definitivamente.
Esse foi um dos efeitos deletérios do Concílio Vaticano II no Brasil. Se por um lado conseguiu-se estancar a sangria de fiéis, por outro sacrificou-se o estudo de uma língua riquíssima, da qual o português é filho. Uma pena.
Não foi o Concilio Vaticano II que provocou a queda do latim no ensino brasileiro. Tive latim no meu terceiro ano de ginásio (1967), e, no ano seguinte, ele foi retirado do currículo. Motivo: um general que mandava nos assuntos de educação fez uma palestra na ESG, palestra essa cuja tese era: “O latim e a filosofia dotam os jovens de uma capacidade crítica lógico-argumentativa indesejável para a nova ordem que se está implementando neste país.” (cito de memória), com esse argumento tirou-se o latim do ensino em 1968 e a filosofia em 1971. Para os pedagogos e educadores o discurso foi outro: “Um país que pretende recuperar-se de um atraso crônico de séculos e avançar para o futuro não pode ter sua educação atrelada a disciplinas obsoletas cuja aplicação prática carece totalmente de fundamentação, portanto é necessário que modernizemos nossos currículos e práticas pedagógicas.”
Interessante, Luiz. Vou pesquisar mais sobre o assunto e depois dou retorno. Um abraço.