“Comida”, ou A profundidade sócio-filosófica de Arnaldo Antunes

Que os Titãs são uma das maiores bandas de rock da história do país, ninguém discute. Que Arnaldo Antunes é um gênio da arte, tampouco é motivo de discussão. Mas quando a matéria é falar sobre uma música específica, aí o pau canta. E, nesse caso específico, talvez o Blog se arrisque mais do que o habitual ao cravar: é dos Titãs, pelas mãos de Arnaldo Antunes, que nasceu a canção sócio-filosófica mais profunda da Música Popular Brasileira: Comida.

Integrante do álbum Jesus não tem dentes no país dos banguelas, Comida também foi lançada como single em 1987, tal foi o sucesso que alcançou nas rádios. Mais do que uma mera crítica social, a música reflete uma obra filosoficamente densa, capaz de provocar uma reflexão profunda em quem se digna a prestar atenção na sua letra. Arnaldo Antunes começa a música já com uma voadora no meio dos peitos do ouvinte:

Bebida é água

Comida é pasto

Se à primeira vista o título poderia indicar a reivindicação de um direito básico de qualquer ser humano – alimentar-se -, não é preciso ser um grande literato para entender que, para Arnaldo Antunes, a existência humana não pode ser reduzida à mera sobrevivência biológica. Se fosse assim, bastaria – como basta para o gado – água e pasto. O buraco, para ele, é muito mais embaixo:

Você tem sede de quê?

Você tem fomo de quê?

Em um país recém-saído de uma atroz ditadura militar, Arnaldo Antunes começa a empilhar as verdadeiras necessidades do cidadão que enxergava a democracia com um misto de esperança e desolação:

A gente não quer só comida

A gente quer comida, diversão e arte

A gente não quer só comida

A gente quer saída para qualquer parte

Não seria exagero enxergar nessa enumeração de carências que transcende as necessidades orgânicas uma espécie de crítica à chamada “razão instrumental”, isto é, à lógica que reduz toda a existência humana a fins utilitários. Emulando um filósofo da Escola de Frankfurt, Arnaldo Antunes denuncia que, numa sociedade de consumo massificado, existe a necessidade de algo a mais do que uma vida na qual se trabalha para comprar comida, para poder manter-se vivo e trabalhar ainda mais. Essa perpetuação do nada conduz a um ciclo tão infinito quanto vazio. O ser humano não é – ou, pelo menos, não deveria ser – um animal cujo estômago domina plenamente suas ações.

A isso se segue o verso talvez mais radical e filosoficamente rico da canção:

A gente não quer só comida

A gente quer bebida, diversão, balé

A gente não quer só comida

A gente quer a vida como a vida quer

Embora alguém possa enxergar um certo caráter hedonista na enumeração de atividades aparentemente fúteis, como bebida, diversão e balé, o ponto central aqui está em recusar a vida de subsistência para reclamar “a vida como a vida quer”. Trata-se de um verdadeiro manifesto no qual Arnaldo Antunes estabelece à la Nietzsche uma vida em que o desejo puro se sobrepõe a regras sociais e à moralidade repressora. Essa linha fica ainda mais evidente no verso seguinte, no qual o compositor diz:

A gente não quer só comer

A gente quer comer, quer fazer amor

A gente não quer só comer

A gente quer prazer para aliviar a dor

Noves fora a evidente duplicidade de sentido estabelecida com o verbo “comer”, Arnaldo Antunes provoca o ouvinte a ir além da lascívia pura e simples do ato sexual. Também ele não pode ser reduzido à descarga hormonal da relação em si. É necessário ir além. Talvez o compositor não avance o suficiente para que se estabeleça um paralelo com o conceito de “vontade” de Schopenhauer, mas é razoável entender que ele define a premência de uma vida se amarras, autêntica, que não seja mero simulacro de regras preestabelecidas.

O último verso resume a crítica social de uma sociedade consumista, que é erguida e gira em torno de uma única coisa: dinheiro. Mas, como Arnaldo Antunes faz questão de frisar:

A gente não quer só dinheiro

A gente quer dinheiro e felicidade

A gente não quer só dinheiro

A gente quer inteiro e não pela metade

O ser humano, portanto, não se completa nem se contenta apenas com o material. Ele se nutre – “come” – também para o espírito. A vida é mais. A vida pode mais. É natural querer mais dela. Sem isso em mente, o homem fica confinado à mediocridade da existência e não se sacia nunca. Tudo que resta, por mais satisfeitas que estejam as necessidades básicas, é somente um imenso vazio.

Numa toada que mistura o funk ao rock, a música brilha com seu arranjo eletrônico, que acompanha sonoramente a letra entoada por seu compositor. Escrita numa época de inflação alta e desabastecimento, a canção transformou-se quase em um hino atemporal contra a miséria intelectual e espiritual que aflige a sociedade moderna. E é por isso mesmo que ela é celebrada até hoje.

Abaixo, o clip original, para quem quiser tirar a prova dos nove:

Esta entrada foi publicada em Música e marcada com a tag , , , , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.