A Era Vargas, ou As incongruências ideológicas da esquerda brasileira

O Brasil, como se sabe, é o país da jabuticaba. Tudo que não existe nos outros países há por aqui. Da própria fruta nativa da Mata Atlântica, passando pela duplicata até chegar no “presidencialismo de coalizão”, o mundo olha para o Brasil com um misto de admiração e espanto. Como será possível compreender um país em que abundam tantas coisas exóticas?

De fato, parece estranho entender que o seu país possa integrar um mundo à parte, onde as coisas que funcionam ou são compreendidas de certa maneira em outros países passam a conhecer uma roupagem completamente distinta, tornando-a ininteligível aos olhares mais apressados. No ramo dos exotismos históricos, contudo, poucas coisas são tão parecidas com a jabuticaba do que o legado da chamada “Era Vargas”.

Gaúcho de São Borja, Vargas forjou-se desde cedo como uma raposa política. Advogado filho de fazendeiros, Vargas espelhava o protótipo perfeito do político da República Velha: rico, elitista e afeto às negociatas de bastidores. Em pouco mais de 20 anos, ele sairia de deputado estadual pelo Rio Grande do Sul a líder da Revolução de 30.

Apoiado pelos tenentistas descontentes com a quebra do pacto do “café-com-leite”, Vargas defenestrou, numa só tacada, o então presidente Washington Luís e seu sucessor, Júlio Prestes, para quem perdera a eleição daquele ano. Iniciava-se o que seria, de acordo com os golpistas, o que seria um “governo provisório”. Mas Getúlio tinha outros planos. E nenhum deles passava pela entrega do poder.

Recusando a denominação de “Presidente da República”, Vargas autointitulava-se “chefe do governo provisório”. Ao melhor estilo das republiquetas bananeiras da América Latina, o propósito de Getúlio era governar indefinidamente, como uma espécie de “comando revolucionário” que se perpetua no poder.

Em São Paulo, contudo, berço dos presidentes depostos, começou-se a articular uma reação. Ninguém ali queria Vargas por muito tempo no comando da Nação, ainda mais sem prazo definido para deixar o posto. Dois anos depois da Revolução de 30, estourava a Revolução Constitucionalista de 1932.

A Revolução, como é sabido, foi sufocada, mas o propósito imediato havia sido alcançado. Getúlio comprometera-se com eleições em 1934, bem como com a convocação de uma assembléia constituinte para o mesmo ano. Os insurgentes paulistas pensavam que haviam ganhado a parada.

Pensavam. Vargas concordara com a constituinte, é fato. E aquiescera também com as eleições presidenciais. Só que, matreiro que era, Getúlio só concordou com o pleito na condição de que pudesse concorrer ao posto. Por via transversa, Getúlio queria a própria reeleição. Com a máquina do Governo numa mão e a força do Exército na outra, o resultado era óbvio. Getúlio venceu a parada por larga margem. Começava, aí, o que veio a se convencionar de “governo constitucional”.

Do ponto de vista formal, o Brasil retornara à democracia. Havia uma constituição promulgada, os poderes estavam funcionando e o presidente – supremo espanto – era o sujeito que havia sido eleito para o cargo. Isso, claro, parava na superfície. Nos subterrâneos, jogava-se o jogo bruto. Em abril de 35, por exemplo, aprovava-se a Lei de Segurança Nacional, destinada a combater os “crimes políticos”. Junto com ela, uma sigla que até então passara despercebida da maioria da população passou a tornar-se inquietantemente comum: DOPS (Departamento de Ordem Política e Social).

No DOPS, como qualquer um pode imaginar, o pau comia. Se o sujeito fosse comunista, então, nem se fala. Quando a Intentona tentou articular a derrubada do regime, Getúlio aproveitou a deixa para endurecer o regime e dar poderes ainda maiores ao DOPS. Luís Carlos Prestes não só engendrara uma revolução falhada como ainda ofereceu de bandeja o pretexto para Vargas tornar-se de vez um ditador. Estavam montadas as bases para o golpe de 1937.

Alegando a existência de uma orquestração para tornar o país uma ditadura comunista sob jugo de Moscou – o chamado “Plano Cohen”, Vargas fechou o Congresso e outorgou de mão própria uma nova constituição. A “Polaca” representou o mais grave retrocesso institucional brasileiro desde a Lei Interpretativa do Ato Adicional de 1834, ainda no Segundo Império. Pior. Do ponto de vista jurídico, ela nem sequer chegou a entrar em vigor, uma vez que seu texto condicionava sua vigência a um plebiscito nacional que jamais veio a se realizar. Nascia, então, o “Estado Novo”.

De “novo”, o “Estado” só tinha o nome. O nome regime de Getúlio representava o que havia de pior nas experiências históricas ditatoriais. À semelhança dos fascistas que habitavam o continente europeu naquela altura, Vargas fazia o que queria. Como o Congresso estava fechado, governava por decreto. Como os partidos políticos estavam extintos, nomeava interventores nos Estados. Como a censura e a repressão corriam soltas, não havia sequer espaço para a sociedade civil tentar articular uma reação organizada à ditadura.

Muito se fala das atrocidades da ditadura militar instalada a partir de 1964, é verdade. Mas é no mínimo curioso que violações ainda mais gritantes ocorridas durante o Estado Novo não ganhem o mesmo destaque na mídia e nos livros de história. Graciliano Ramos, por exemplo, escreveu seu Memórias do Cárcere na prisão, por envolvimento com a Intentona Comunista. Na Chefatura de Polícia do Rio de Janeiro, a tortura rolava às claras, com presos tendo suas unhas arrancadas durante os suplícios.

Nenhum desses atos, contudo, compara-se à tragédia da mulher de Prestes. Olga Gutmann Benario era comunista e judia, mas seu maior problema na época foi ter nascido alemã. Como os nazistas quisessem fazer dela um “exemplo” para o mundo, pediram sua extradição. Embora estivesse grávida de Anita Leocádia, uma futura cidadã brasileira, Vargas assentiu com a extradição.

Verdade que ele contou com os conhecidos juristas de ocasião: Clóvis Bevilácqua, que defendeu a extradição, e Vicente Ráo, que a assinou, como Ministro da Justiça. Isso, claro, para não falar da subserviência do Supremo Tribunal Federal, que autorizou a entrega da prisioneira à Alemanha Nazista. Mesmo assim, ninguém tira dele o “mérito” da extradição de Olga.

Durante longos 8 anos, o Brasil viveu um dos períodos mais terríveis em toda a sua história política. Somente em 1945, quando até os militares se cansaram de Getúlio, Vargas veio a ser deposto. Curiosamente, o sujeito que forjou sua ascensão política na base do autoritarismo, fazendo do anti-comunismo sua bandeira mais evidente, tornou-se, a partir da segunda metade do século XX, um ícone da esquerda brasileira. Agora, além da jabuticaba, temos o ditador que muda de ideologia depois de morto.

Coisas do nosso Brasil…

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