Recordar é viver: “Autópsia de uma deposição, ou O saldo do impeachment”

Um ano depois, hora de recordar o post pós-Dilma para entender como fomos parar neste buraco em que estamos…

Autópsia de uma deposição, ou O saldo do impeachment

Publicado originalmente em 14.9.16

Com algum atraso, é verdade, enfim podemos analisar a deposição de Dilma Rousseff através do impeachment.

Julgada por um Senado que até outro dia era majoritariamente composto de aliados, Dilma conseguiu a proeza de ir perdendo votos a cada votação que se seguia. Os 22 votos que conseguira no recebimento da denúncia minguaram para apenas 21 na fase de pronúncia e terminaram em apenas 20 no julgamento final do Senado, com acachapantes 61 votos pela condenação da ex-presidente.

No meio de tudo isso, o já tradicional Fla x Flu entre “petralhas” e “coxinhas” tratou do caso como era de se esperar. Quem era a favor, continuou a favor. Quem era contra, continuou contra. E quem achava que era “golpe” ou não era “golpe” não se animou a fazer qualquer reflexão sobre o resultado final. Na maioria dos casos, as pessoas preferem morrer abraçadas às próprias convicções, ainda que a realidade lhes seja contrária. Felizmente, esta não é a tônica deste espaço.

Quem acompanha o Blog há algum tempo sabe que a posição do Autor sempre foi a favor da legalidade do impeachment. A questão é puramente simples: o regramento constitucional opera sob uma lógica formal. Há a lei, e ela deve ser respeitada. O que eu acho ou não dela pouco importa. Na análise da aplicação das normas jurídicas, obedece-se, em regra, a um critério de subsunção: o fato ocorre, sobre ele incide determinada norma jurídica e daí decorrem as consequências previstas na lei. Limpo e seco.

Há, claro, quem se insurja contra o formalismo legal. O problema é que não se pode julgar a validade de uma norma a partir de minha opinião pessoal sobre ela. Pode-se achar uma excentricidade sem sentido que o texto constitucional assegure ao Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, a sua permanência na esfera federal. O fato, contudo, é que ela está lá. Logo, não há como justificar, sob um prisma estritamente jurídico, seu traslado para a esfera estadual, porque tal norma iria de encontro à Constituição.

No caso do impeachment, as duas principais críticas ao processo aberto contra Dilma Rousseff eram: 1) o processo é eminentemente político; 2) ainda que sejam crimes de responsabilidade, as pedaladas não justificariam a aplicação de pena tão grave (cassação do mandato).

A primeira crítica cai no pressuposto de validade acima mencionado. Não é que o impeachment seja um processo com contornos jurídicos, mas essencialmente político. Ele é antes de tudo político com contornos jurídicos. Mais que isso. A Constituição quer que ele seja político. Do contrário, jamais o constituinte outorgaria a competência para seu processamento a duas casas compostas por parlamentares (Câmara e Senado), nem muito menos atribuiria a última palavra sobre a matéria à Câmara Alta do Parlamento. Se fosse um julgamento técnico – no sentido de que não é político -, seria óbvio que a Constituição não imputaria a deputados e a senadores – seres parciais por natureza – a tarefa de decidir sobre os impropriamente denominados “crimes de responsabilidade”.

Aliás, entender os impropriamente denominados “crimes de responsabilidade” é o que permite compreender qual é a lógica adotada pelo constituinte. No caso dos “crimes comuns”, ou seja, aqueles que podem levar à cadeia, a Constituição atribui seu julgamento ao Supremo Tribunal Federal, não ao Senado. Por quê? Porque no caso de crimes comuns, o sujeito arrisca-se a uma sanção pessoal (traduzindo: cadeia). Logo, assim como para todo e qualquer mortal, exige-se: 1) um juízo técnico e imparcial; 2) provas que corroborem um devido processo legal.

Já no caso dos “crimes de responsabilidade” – que de “crimes” só têm o nome -, não há nada disso. Há a cassação do mandato e a suspensão dos direitos políticos. Não há cana dura. Daí a Constituição atribuir seu “julgamento” a instâncias políticas. Se fôssemos aplicar a lógica do processo judicial, teríamos logo de cara que dar por suspeitos todos os parlamentares que fossem a favor ou contra o governo, por violação do princípio da imparcialidade do julgador. Com isso, o impeachment se tornaria letra morta do texto constitucional, pois jamais teria como ser aplicado na prática.

A segunda crítica é talvez a mais difícil de contraditar. Isso porque ela diz respeito a um dos princípios mais caros ao Direito, seja em qualquer esfera (administrativa, civil ou penal): o princípio da proporcionalidade. É dizer: um presidente que tomou um porre e deu vexame no carnaval pode sofrer a mesma sanção de um presidente flagrado em pleno ato de corrupção. Em qualquer dos casos, o resultado é um só: impeachment.

De fato, não se trata de uma crítica tola. Como a lei não faz distinção entre os “crimes” e a todos imputa uma única sanção (cassação do mandato), não há margem para compatibilizar a gravidade do ato com a punição a ela correspondente. Assim, qualquer impeachment motivado por um “ato menor” – e há quem diga que as pedaladas se enquadram nesse conceito – seria desproporcional. Logo, seria também inconstitucional.

A solução para esse aparente paradoxo passa pela compreensão da natureza eminentemente política do impeachment. Uma vez que a aplicação da pena necessita da aquiescência de 2/3 do Parlamento, o constituinte presume que simplesmente não há espaço para que se faça um juízo de proporcionalidade nesse caso. É dizer: um presidente que tem contra si 2/3 da Câmara e do Senado, seja para tirar-lhe o mandato, seja para aplicar-lhe uma mera admoestação escrita, simplesmente não tem mais condições de governar.

Isso considerado, bem se vê por que o impeachment adota a lógica da “sanção única”. Se um presidente não tem maioria – aliás, uma minoria de 1/3 – para impedir uma condenação pelo Parlamento, ainda que ela seja irrelevante (como uma reprimenda verbal), não possui mais condição de manter-se no cargo. O que o impeachment propõe-se, portanto, é resolver uma questão política, através da reconstituição de um novo governo mediante a a deposição de um presidente cuja maioria congressual e suporte popular se esfarelaram.

No caso de Dilma Rousseff, todo esse script foi seguido à risca. O presidente da Câmara dos Deputados recebeu a denúncia (e pouco importa que tenha sido Eduardo Cunha ou os motivos que o levaram a isso), a Câmara autorizou o processamento e o Senado, ao final, decidiu por sua cassação.

Se é assim, o que houve de errado com o impeachment de Dilma Rousseff?

Fundamentalmente, o que maculou o processo contra a ex-presidente petista foi o seu julgamento final pelo Senado.

No texto constitucional, o dispositivo relativo ao impeachment de presidente é muito claro. Diz ele que a condenação “somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal”, levando o ocupante “à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos”, para o exercício de função pública (art. 52, parágrafo único, CF/88). Ou seja: se for o caso de condenar-se, o presidente não só perde o cargo como ainda ficará impedido de ocupar qualquer função pública por oito anos. Não se trata de condenação alternativa (ou um ou outro). Tratava-se de imposição aditiva (um e outro).

Isto posto, quando o Senado, sob o beneplácito do presidente do STF, Ricardo Lewandowski, admitiu o “fatiamento” da decisão, a lógica formal que sustentava a regularidade do processo foi para o espaço. No momento em que os senadores resolveram condená-la à perda do cargo, mas não à inabilitação da função pública, rompeu-se o mínimo formalismo jurídico que o impeachment demanda.

Se de fato seria possível fazer uma “dosimetria” da “pena”, o mais lógico seria que Dilma fosse inabilitada da função pública, mas não perdesse o cargo. Não faz sentido, do ponto de vista técnico, que se aplique a sanção maior desprezando-se a menor. Seria o mesmo que condenar um réu à prisão, mas deixar de lançar seu nome no rol dos culpados.

Ao aplicar a “pena” mais grave e isentá-la da “pena” menos grave, o que sobra da decisão do Senado?

Sobra a conclusão de que, no entender dos senadores, Dilma não deveria ter sido deposta. Ou bem Dilma deveria ser condenada pelas pedaladas, e, portanto, deveria arrostar todas as consequências resultantes dessa condenação; ou então o crime não era suficientemente grave para justificar a condenação, e, nesse caso, não haveria como licitamente depô-la.

Ao produzir uma decisão meio rinoceronte, meio girafa, o Senado Federal jogou por terra os argumentos de quem defendia a legalidade do processo de impeachment. Pouco importa saber se a decisão foi resultado da clemência dos senadores ou de um arranjo político de ocasião. Do ponto de vista lógico-jurídico, não há mais como sustentar que Dilma foi deposta por um processo regular. Na melhor das hipóteses, houve uma subversão do texto constitucional, pois o que se pretendia era somente removê-la do cargo de presidente, sem que os próprios senadores entendessem que havia justificativa jurídica mínima para a deposição.

Se isso ainda fosse pouco, os senadores ainda conseguiram a suprema façanha de operar um golpe em retrospectiva. Ao conferir a Dilma tratamento distinto do conferido a Fernando Collor, Suas Excelências legitimaram retroativamente o discurso do ex-presidente de que a cassação de seus direitos foi uma decisão eminentemente política, desprovida de qualquer base jurídica. Se a idéia do impeachment é unicamente depor o presidente, como sugere a decisão do último dia 1º de setembro, a imposição da pena de inabilitação a um presidente que já renunciara ao cargo somente pode ser atribuída ao receio de que o povo voltasse a elegê-lo.

A decisão do Senado, portanto, representa uma tragédia em vários sentidos. Não só porque permitiu que a pior governante da história do país saísse como vítima de todo esse processo, mas também por legitimar, por via transversa, o golpismo do PT. Ele, que sempre tentou depor os presidentes eleitos após a redemocratização por qualquer motivo, agora vê-se na privilegiada condição de ter se livrado de um fardo (Dilma) e ainda ter ganhado um discurso para usar nas próximas eleições (o do “golpe”).

Durma-se com um barulho desses…

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